domingo, 29 de junho de 2008

As muitas vidas de Valêncio Xavier

Foto: Cristiane Lemos

Os cineastas Pedro Merege e Beto Carminatti com Valêncio Xavier (ao centro) e seu fusca em foto de 2004: paixão pela cultura

Aos 75 anos, escritor radicado em Curitiba ganha cinebiografia, adaptação de sua obra para as telonas e versão de seu livro mais famoso para teatro

Rafael Urban
Equipe da Folha*


Marcos Borges
Beto Carminatti já pensa em um terceiro longa-metragem: ‘A vida e obra dele são muitos filmes


Marcos Borges
Gravação na Cinemateca de Curitiba tomada pelos amigos e familiares que vão ajudar a reconstruir em filme a memória de Valêncio Xavier

Beto Carminatti, como todo adolescente típico dos anos 70, não era dos mais silenciosos quando assistia a um filme no cinema. Na Cinemateca do Museu Guido Viaro, criada em 75 e mais tarde, em 98, rebatizada como Cinemateca de Curitiba, Carminatti ia com freqüência com seu irmão Rui Vezzaro e as respectivas namoradas. Era bagunça na certa. ''E o Valêncio não curtia isso. Para ele, cinema era algo sagrado, que não permitia essas molecagens'', conta Carminatti. O Valêncio de sua frase é, de batismo, Valêncio Xavier Niculitcheff, o homem por trás da criação da Cinemateca, espaço que deu origem a toda uma geração de cineastas.

''Com toda e absoluta certeza, esse grupo, conhecido como Geração Cinemateca, não existiria sem a atitude de Valêncio. O que ele fez foi um ato heróico'', enaltece um dos expoentes do grupo, o cineasta Fernando Severo. O ato de heroísmo foi promover a criação de um espaço cultural dentro da prefeitura da cidade, com poucos recursos e uma programação vasta. ''Vi diversas retrospectivas e pela primeira vez muitos dos filmes do Cinema Novo. E lá tive aula de montagem com o Peter Przygodda, editor dos filmes do diretor alemão Wim Wenders, e de direção com (os cineastas brasileiros) Ozualdo Candeias e o Rogério Sganzerla'', lembra.

Xavier não é apenas o criador do espaço que deu abertura a toda uma geração do cinema paranaense. É também um escritor de reconhecimento nacional, celebrado a partir de 98, quando sua obra passou a ser editada pela Companhia das Letras. ''O Mez da Grippe e Outros Livros'', escrito desta forma, com grafia de época, reúne uma série de trabalhos e foi listado entre os mais vendidos da Revista Veja.

''Ele já tinha sentido esse reconhecimento antes, quando foi para São Paulo, onde escreveu no Estado e na Folha. Foi aí que ele se deu conta do quanto era admirado'', explica a filha de Valêncio Xavier, a engenheira de alimentos Ana Pasinato Niculitcheff, 35. ''Meu pai sempre falou da dificuldade de ser reconhecido em Curitiba e entendia isso como uma característica do povo daqui.''

Há três meses nasceu Laila, filha de Ana e a primeira neta de Valêncio. ''É só uma pena que ele não esteja bem para curtir esse momento. O Alzheimer faz com que tenhamos de dividir as atenções entre ele e a pequena.'' Depois do diagnóstico, em 2002, Valêncio Xavier ainda escreveria um conto publicado no livro ''Rremembranças da Menina de Rua Morta Nua e Outros Livros''.

Xavier veio para Curitiba em 68, para trabalhar no Canal 6, deixando para trás a São Paulo da infância, retratada no livro ''Minha Mãe Morrendo e o Menino Mentido'', e o emprego com Sílvio Santos. Na época, escrevia para os programas do apresentador que comprava horários nas TV Globo e Tupi. A função incluía roteirizar, ao lado de Tulio de Lemos, ''Namoro na TV''. ''Mas meu pai não se considerava paulistano. Ele dizia: 'Sou curitibano'. E por isso mesmo escreveu sobre a cidade'', lembra a filha Ana.

Em ''O Mez da Grippe e Outros Livros'', ele retrata o surto da gripe espanhola na Curitiba de 1918. Usa de imagens de arquivo, jornais da época e trechos que ele mesmo escreveu e que descrevem a trajetória de um estuprador. A estética não-usual em que combina imagem e texto é uma marca de sua obra. ''Ele foi dos escritores precursores da multimídia'', comenta Cristovão Tezza, escritor nascido em Lages (SC), mas que mora no Paraná desde os dez anos de idade.

A opinião de Tezza é compartilhada pelo professor de literatura brasileira da Universidade Federal do Paraná (UFPR) Paulo Venturelli. ''O trabalho de Valêncio é extremamente de vanguarda. E quebra a estética realista, marca da literatura brasileira atual.''

Venturelli entende que Xavier é um autor também reconhecido no Paraná. ''Há muitos alunos de mestrado e doutorado escrevendo teses sobre a sua obra'', diz. ''Pela sua inquietude e preocupação metalingüística, se destaca dos demais. Valêncio Xavier é um autor de ponta.''


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Biografia e adaptação para longa-metragem

De freqüentador assíduo da Cinemateca, nos anos 70, Beto Carminatti virou cineasta e leitor compulsivo da obra de Valêncio Xavier. ''Ele escreve como se estivesse fazendo o roteiro para um filme.'' Carminatti levou ao pé da letra a sua afirmação e no lugar do roteiro levou o livro ''O Mez da Grippe e Outros Livros'' para o set de filmagem na adaptação da obra que realizou ao lado de Pedro Merege, também discípulo do escritor e cineasta.

O filme, que já está pronto, deve ser lançado no segundo semestre. ''Estava preocupada, pois apesar de a obra do meu pai ser bastante cinematográfica, achava que era impossível de ser adaptada ao cinema. Mas fiquei orgulhosa. É um filme que carrega o clima dos livros'', comenta Ana Pasinato Niculitcheff, filha do escritor.

O longa ''Mystérios'' nasceu da parceria com Merege, com quem Carminatti já tinha trabalhado no belo curta ''O Mistério da Japonesa'', também adaptado da obra de Valêncio. O cineasta, porém, não quis parar por aí e já está filmando um segundo longa. Intitulado ''As Muitas Vidas de Valêncio Xavier'', o filme é uma biografia sobre o escritor.

Há três anos, com a pesquisadora de cinema Solange Stecz, gravou algumas cenas com Valêncio em sua casa. O material será somado àquele que Carminatti está realizando agora.

''A cena de abertura é a Cinemateca sendo tomada pelas pessoas que vão ver os seus filmes e, depois, através de depoimentos, reconstruir a história do Valêncio'', explica o diretor.

A pesquisadora Solange Stecz fala com carinho de Xavier. ''Quando ainda estava na faculdade de Jornalismo, ganhei um concurso de crítica na Cinemateca. O prêmio era um livro de cinema. Fui conversar com Valêncio e lhe disse que queria o 'Curitiba de nós', escrito por ele e ilustrado pelo Poty (Lazarotto). Ele gostou tanto daquilo que não apenas ganhei o livro como o cargo de estagiária.''

Harry Luhm, 78 anos de idade e boa parte deles dedicados ao cinema, conheceu Valêncio quando o escritor foi diretor do Museu da Imagem e do Som (MIS), nos anos 80. ''Ele era extremamente dedicado e um tanto quanto temperamental'', conta.

O jeito forte e por vezes ríspido de lidar com as pessoas é lembrado pelo colega Fernando Severo. ''Como todo gênio, ele tinha os seus rompantes.'' Luhm recorda de algumas noites que Valêncio passou em sua casa telecinando o filme argentino ''Tango'', o que foi feito debaixo de muita discussão. ''O Valêncio sempre tinha razão e eu discutia com ele por achar que eu tinha mais razão, mas ele nunca concordava.''

No projeto do documentário, Carminatti ainda propõe uma viagem a Porto Alegre, Rio de Janeiro e São Paulo para gravar depoimentos de personalidades como José Rubens Siqueira, Jean-Claude Bernardet, Eduardo Coutinho, Vladimir Carvalho e Arnaldo Antunes; pessoas que tiveram contato com Valêncio Xavier ou que têm uma relação forte com a sua obra. O cineasta pretende ainda restaurar trechos dos curtas de Valêncio a serem utilizados no longa.

A obra cinematográfica do paulistano radicado em Curitiba foi toda realizada de maneira independente e com condições técnicas simples. ''A lentidão da tecnologia não alcançava a velocidade de seu raciocínio'', comenta Carminatti. (R.U.)


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'Grippe' no teatro

Não é apenas no cinema que a obra de Valêncio Xavier ganha destaque. No dia 24 de julho, estréia em Curitiba ''Mez da Grippe'', no Teatro Novelas Curitibanas. No palco, a Pausa Cia. de Teatro, companhia jovem, criada em 2005, busca a sensualidade no texto de Xavier.

''E como faz para levar isso ao teatro? Essa resposta a gente ainda não tem'', comenta o ator da companhia Rodrigo Ferrarini. ''Consideramos o (Paulo) Leminski e o (Dalton) Trevisan, mas foi na obra de Valêncio que encontramos o desafio maior.'' O trabalho será dirigido pelo carioca Moacir Chaves, que Ferrarini considera o melhor diretor de atores do País. (R.U.)


* Reportagem originalmente publicada no Caderno Folha 2 do Jornal Folha de Londrina, do dia 29/06/2008.

Sobre o texto: o “Mez da Grippe” é arrebatador. A reportagem é a minha primeira colaboração ao Folha 2, caderno de cultura do jornal.

Ponto de partida: ler “Mez da Grippe” durante a faculdade foi algo incrível. Me dava conta ali que outra literatura era possível. Mais tarde, ainda na universidade, descobri que Valêncio não era apenas um baita escritor, mas o grande responsável pela Cinemateca de Curitiba. Aumentou aí a minha curiosidade de saber um pouco mais sobre sua vida. As filmagens da cinebiografia concluíram com chave de ouro essa idéia.

A reportagem: aproveitei para ler as obras de Valêncio que ainda desconhecia. Quando fiz as primeiras entrevistas, ainda por telefone, uma questão começou a martelar minha cabeça. Merege, Solange, Severo e mesmo Carminatti me sugeriram que eu não deveria citar a doença que acomete Valêncio desde 2002: o Mal de Alzheimer. “A família não gostaria de ver isso publicado”, me disseram. Carminatti chegou a propor que eu conhecesse Valêncio, o que não foi aceito pela família. De algum modo, já estava resignado que a família não iria dar um depoimento.

No dia 24 de julho, uma terça-feira, os ventos mudariam de direção. Fui acompanhar a gravação dos primeiros depoimentos de “As muitas vidas de Valêncio Xavier” – título do qual me aproveito e utilizo na matéria. A Cinemateca estava tomada não apenas pelos amigos e conhecidos de Valêncio, mas por Ana, sua filha, com a neta Laila no coloco. Ela estava um tanto receosa, mas topou falar comigo numa boa. Não toquei no assunto da doença de seu pai, mas, por alguns momentos, ela citou o assunto, comentando que tinham de dividir as atenções entre ele a pequena Laila. Conversamos por um bom tanto, em que ela me falou de como era ser filha de Valêncio Xavier. Escrevi um trecho sobre a conversa, que acabou cortado pela editora da versão final (afinal de contas, a página de jornal tem seus limites físicos), e que reproduzo abaixo:

Eu queria um pai normal
Quando era criança, Ana Pasinato Niculitcheff escutava alguns nomes estranhos nas constantes conversas que seu pai tinha ao telefone: Polanski, Visconti e Saura. Pouco mais tarde, se encantaria com a exibição de “Bodas de sangue”, na Cinemateca. Depois, viveria próxima daquele universo, chegando a trabalhar na bilheteria de um dos cinemas administrados pelo pai. Quando adolescente, estava certa de uma coisa: queria um pai médio, um pai normal. “Eu achava que se ele fosse advogado, médico ou dentista não passaríamos tanta dificuldade”, conta, uma vez que Xavier não entrava apenas com a paixão e dedicação em seus projetos como com o dinheiro do próprio bolso.

Ana sentia-se livre para fazer suas escolhas. Conta que seu pai nunca insistiu para que visse um filme ou lesse uma obra do escritor argentino Jorge Luis Borges. “Eu falava: ‘Pai, faz a minha tarefa da escola?’, e ele me dizia: ‘Filha, você tem que aprender sozinha’.” Na adolescência sentiu a pressão por ter um pai especial, mas de uma coisa estava certa: queria trilhar um caminho diferente. “Olhava para ele e pensava. ‘Não quero ser comparada a você.’ Também não queria ser apenas uma versão medíocre do que ele era.” Ana acabou optando pela engenharia de alimentos. No mundo das artes, chegou a flertar com a fotografia, o que deixou o pai bastante animado.

O que parecia um fardo, mais tarde Ana percebeu como uma dádiva. “Hoje dou graças a Deus por ter nascido nessa família. Noto que o que há de melhor em mim eu aprendi com ele.” (R.U.)

Depois, tirei algumas dúvidas com Ana pelo telefone. Sua mãe, dona Luci, não quis dar entrevista. Mas a filha fez a ponte, repassando algumas perguntas simples. Eu precisava saber qual a época que tinham vindo em definitivo para Curitiba. A voz de dona Luci, que eu escutava ao fundo da ligação, lembrava dos detalhes. Falei de um livro que estava buscando (“Rremembranças...”) e Ana me disse que eu poderia buscá-lo em sua casa no dia seguinte, pois ela tinha um exemplar para me dar. A sala de estar da casa de Valêncio Xavier, no bairro Ahú, é pequena e aconchegante. Nas paredes, algumas pinturas e duas gravuras do amigo Poty. Ana chega e se diz preocupada por me fazer esperar. Eu, do lado de cá, estava feliz por ela me dar a oportunidade de estar ali. Ela me apresenta o livro ''Rremembranças da Menina de Rua Morta Nua e Outros Livros'', o último publicado por Valêncio e me diz que aquela cópia é para mim. Lamenta por Valêncio não poder autografá-lo.

“Uma coisa sobre esse livro é que o meu pai queria que tivesse sete contos, pois tem um em que ele trabalha com o número 7. Por isso, ele escreveu o conto ‘Coisas da noite escura’. É o único publicado e escrito depois do diagnóstico da doença. E, que me lembre, é a primeira vez que conto isso para alguém.” Ana assentiu: sim, aquela era uma informação que poderia estar na matéria. Fiquei triste, pois, na edição, parte do trecho acabou cortado e o nome do conto acabou ficando de fora. “Coisas da noite escura” encerra-se assim: “O padre tina rosto cinzento e os olhos vermelhos, as unhas compridas e afinadas na ponta, isso tudo me deixou assustado e resolvi sair: ‘Boa noite senhor padre, vou para o hotel’. ‘Não, não vai. Vai ficar aqui’, disse ele. E me matou, eu Valêncio!

Estou morto.”

“Rremembranças” é de algum modo, um retorno ao “Mez da Grippe”. Ana ainda me conta que “Macao”, um dos contos do livro, é um dos favoritos de seu pai. Das coisas que não couberam na página de jornal, essa matéria foi pródiga. Foram muitos depoimentos interessantes que ficaram de fora – como os de Eloi Pires Ferreira, Pedro Merege ou mesmo outros trechos de Severo, Carminatti e Solange. Tentei contato com a editora que levou Valêncio à Cia. das Letras, mas não consegui falar com ela. Por alguma razão que desconheço, ela não topa falar do assunto.

Ainda me restava a questão que me atormentava. Conversei com a editora da sucursal, Drica, que falou: “Rafael, se não aparece na matéria o porquê de ele não dar um depoimento, isso só chama mais à atenção das pessoas.” Matéria terminada, eu liguei para Ana, filha de Valêncio. – Olá Ana. – Ah! Oi, Rafael. – Ana, gostaria de citar a doença de seu pai na matéria, mas quero que seja algo sutil. Você topa que eu leia o trecho para você e você me diz se está razoável? – De acordo. – (aqui eu leio o trecho...) – Rafael, está respeitoso. Gostei sim. Pode colocar (...) – assim, um peso de algumas toneladas deixou o meu peito.

Repercussão: Eduardo Baggio, cineasta, amigo e professor de cinema, leu a matéria e comparou o trabalho ao de um cronista, relatando o seu tempo – idéia que, por sinal, me apetece. Sugeriu a leitura das crônicas jornalísticas de Rubens Braga. Severo e Solange leram e gostaram da matéria, sem maiores exaltações. A editora do caderno Folha 2, de Londrina, Phoenix Finardi, ficou um tanto furiosa com o tamanho da reportagem que enviei. Por um engano, contei errado os caracteres e ultrapassei uns 30% o permitido – o que levou ao corte do trecho que reproduzi acima e a cortes no box sobre o longa, especialmente trechos em que ambientava a gravação. Quando devolvi os livros que Ana me emprestou (além do que ela me deu ela deixou comigo um livro sobre a história da TV no Paraná e outro sobre a Cinemateca de Curitiba, que reproduz a bela carta de fundação), deixei um exemplar do jornal com ela. Porém, desde então não nos falamos. Não sei como a família recebeu a reportagem.

Beto Carminatti achou tenebrosa a escolha de sua foto, com uma lâmpada sob seu rosto e que abre a página de jornal. "Os amigos do norte (do Estado) me ligaram tirando sarro, dizendo que parecia que eu tinha saído nas páginas policiais", me disse Carminatti ao telefone bastante entristecido. Quanto ao texto, ele julgou que "tentou tratar de diversos assuntos, mas que ficou bacana", comentou, por fim, sem muita exaltação. "Cara, fiquei tão abalado com a foto, tão chateado, que nem dei muita bola para o texto. E não foi um, nem dois, muita gente me ligou falando da imagem. Confiei no fotógrafo; na hora de fazer a foto, não achei que ele cometeria tamanha infelicidade."

Erros, lapsos e confusões: a grafia de época de ''Rremembranças” acabou ficando sem o segundo “r”. Tinha avisado a editora sobre “Mez da Grippe”, mas não deixei claro que a grafia não usual também era o caso do outro livro.

Para completar, segue um pequeno quadro com as obras de Valêncio Xavier publicadas pela Cia. das Letras:

"O mez da grippe e outros livros"
328 páginas, Companhia das Letras (1998), R$ 59

"Minha mãe morrendo e o menino mentido"
224 páginas, Companhia das Letras (2001), R$ 53

"Rremembranças da menina de rua morta nua e outros livros"
144 páginas, Companhia das Letras (2006), R$ 42,50

quinta-feira, 26 de junho de 2008

À Giuliani

Com quatro meses no cargo, o secretário Fernando Francischini, que se espelha no ex-prefeito de Nova York, fala do novo perfil de traficantes e promete o fim da cracolândia até o final do ano

Rafael Urban
Equipe da Folha*

Theo Marques
‘‘O mais difícil foi esperar três meses para andar armado’’, diz o secretário Fernando Francischini, que entrou no exército aos 17 anos


A vontade de entrar no Exército era tanta que, aos 17 anos e nove meses, Fernando Francischini se alistou. ''O mais difícil foi esperar os três meses para poder andar armado.'' Londrinense, Francischini é formado em Direito e foi oficial da Polícia Militar antes de comandar um pelotão da Rone. Hoje, aos 38, carrega a experiência de 12 anos como delegado da Polícia Federal. ''Tentáculos'', ''Março Branco'', ''Ícaro'' e ''Zapata'' foram algumas das principais operações da PF dos últimos anos. Francischini estava por trás de todas elas.

Antes de assumir a Secretaria Antidrogas Municipal (SAM), que completou quatro meses no último sábado, ele ainda seria um dos responsáveis pelas prisões do traficante de drogas colombiano Juan Carlos Ramirez Abadia e do contrabandista Law Kim Chong. ''Em novembro do ano passado eu vim visitar a família em Curitiba. Foi o deputado estadual Ney Leprevost quem me apresentou ao prefeito. Ele disse: 'Beto, este é o delegado que prendeu o Abadia', ao que o prefeito comentou: 'Então por que você não faz um projeto para combater a violência aqui na cidade'? Ainda que não seja da competência da prefeitura, temos de ajudar.''

Esse é um dos temas caros ao secretário. Sobre a relação com o governo do Estado, é de poucas palavras. ''É difícil, é difícil.'' Por ser ano eleitoral, a dificuldade é maior ainda. ''Mas tenho esperanças. Acho que, passado esse período, podemos trabalhar juntos'', diz, um tanto resignado por não poder ir para a ação.

Diferente daquele por quem se espelha, o ex-prefeito de Nova York, Rudolph Giuliani, Francischini, como secretário municipal, não tem o poder de polícia, pois no Brasil a função cabe aos governos estaduais e Federal. ''Admiro o Giuliani. Ele limpou a polícia e fez ações sociais, coisa que o governo Federal tenta, mas não consegue.''

Como a Folha de Londrina já tratou em reportagem anterior, a galinha dos ovos de ouro do secretário é a Rede de Colaboração Curitibana, que será lançada hoje à noite na Ópera de Arame. É o que ele chama de mega-projeto. Uma rede de colaboradores, que informariam por um sistema online baseado em conceitos da PF tudo o que sabem sobre o tráfico de drogas na sua região. ''A informação vai chegar mastigada às polícias. Vamos falar quem é o cara, onde vive, seu telefone e onde atua. Ao mesmo tempo, vamos enviar uma cópia disso ao Ministério Público (MP), para que cobre essa ação.''

Segundo a assessoria do MP, houve uma conversa preliminar sobre a parceria, mas até o momento ainda não foi acertada. Quanto ao secretário de segurança pública do Estado, Luiz Fernando Delazari, a FOLHA fez um pedido de entrevista, mas ele não comentou o assunto.

O treinamento dos colaboradores de Francischini começou no dia 24 de maio, quando 2.200 deles passaram por um seminário de quatro horas sobre drogas, incluindo uma palestra com o próprio secretário. O palco para o evento foi uma igreja evangélica, na Cândido de Abreu. Dos presentes, 800 eram pastores. ''Imagine que cada uma delas repasse essa informação para outras 100. Logo, serão 220 mil.''

Questionado sobre a possibilidade real de alcançar tantas pessoas, Francischini comenta: ''Mesmo que seja multiplicado por dez, alcançaremos com essa primeira palestra 22 mil pessoas, que já é um número grande.''

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‘Enxugando gelo’

‘‘Nos últimos dois meses foi complicado. A pressão está grande. Antes era fácil achar crack em qualquer lugar. Agora está tudo espalhado’’, comenta um usuário da droga (ver texto nesta página). De acordo com o secretário Fernando Francischini, a reforma da Tiradentes foi um pedido dele e do coronel Itamar dos Santos, secretário municipal de Defesa Social. ‘‘Ali era o centro do tráfico. Melhoramos a iluminação e instalamos mais 22 câmeras no setor histórico.’’

A reforma da praça será entregue amanhã. Segundo dados da prefeitura, desde o início do monitoramento, em março, 57 pessoas foram detidas graças à implantação da tecnologia. As novas câmeras vieram a somar às outras 14 que já haviam sido instaladas.

Quando chegou, há quatro meses, Francischini tornou célebre a sua frase de que estaria cansado de enxugar gelo. ‘‘Participei de todas as grandes operações e muito cedo alcancei altos postos na PF. Me faltavam desafios.’’

Acredita que aliar prevenção e repressão pode evitar a repetição do ritual de secar gelo, que ele atribui a idéia de que uma mega-operação da PF leve a prisão de um grande traficante apenas para outro surgir no lugar. Entre os traficantes, cita uma mudança de perfil. Antes, aquele que virava usuário acabava morto pelo traficante maior. Hoje, o traficante de ponta é dependente químico. ‘‘Ele vende seis ou sete pedras e ganha duas. E vive como um usuário-zumbi.’’

Questionado se não estaria repetindo o ritual praticado por anos na PF, Francischini diz que o que lhe dá a segurança de seguir em frente é o resultado do início do trabalho com um dos projetos que trouxe na bagagem: o Bola Cheia. Ele promete que até o final do ano a proposta alcance as nove regionais da cidade. A idéia começou a entrar em prática no Colégio Expedicionário, no Novo Mundo. Às sextas-feiras e sábados, das 22 às 2 horas da manhã, horário de pico no tráfico, o colégio abre as portas e oferece uma série de atividades de lazer para jovens e adultos.

‘‘Eu fui com o motorista em um carro da prefeitura e passamos pelos seis pontos de venda de drogas da região à uma hora. Eles estavam vazios. Os vaporzinhos estavam todos no projeto.’’ A idéia não é nova. Francischini traz o modelo que Rudolph Giuliani implantou em Nova York nos anos 90. ‘‘É um projeto estudado. Dando ao jovem atividade à noite, evita que ele vá até a esquina ou para o boteco vender bebida. É dali que nasce o tráfico’’, diz. (R.U.)

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Centro é o maior ponto de venda de drogas

''O Beto (prefeito Beto Richa) me diz que Curitiba, por ser o primo rico, tem a obrigação de ajudar''. O secretário Francischini, então, tem buscado conversar com os prefeitos da Região Metropolitana de Curitiba (RMC) - afirma já ter contatado os de Colombo, Pinhais, São José dos Pinhais e Tijucas do Sul - para implantar o seu sistema em outras cidades. Sobre o centro da capital, afirma que um estudo que fez comprovou ser o ponto de maior venda do tráfico de drogas. ''Mas na periferia é muito mais forte a relação com os homicídios.''

Enquanto Sítio Cercado, Uberaba, Cajuru e CIC são os locais que ficam logo na seqüência do Centro em venda de drogas, eles são justamente os quatro primeiros em relação a homicídios. ''Na região central a venda é mais qualificada. É o ecstasy das boates, a cocaína e não só o crack.''

Francischini foi cedido pela PF e trouxe consigo uma equipe de peso. Como substituto, ele tem o delegado Ruben Fockin, há 33 anos na PF, e mais dois agentes da área de inteligência. A equipe da Secretaria Antidrogas Municipal totaliza 42 pessoas e conta com psicólogos, médicos, sociólogos e pedagogos.

Outra frase que marcou a chegada do secretário a Curitiba foi a de que acabaria com a cracolândia, o polígono do tráfico na região central da cidade. ''Funciona à luz do dia na cara da gente. Quando uma autoridade quer mostrar que está trabalhando, ela pega um ponto simbólico'', diz, pouco antes de fazer um anúncio. ''Você vai ter novidades muito em breve. Pode esperar. Estou certo que até o final do ano você vai voltar aqui para me ouvir falar do fim desta história'', afirma. ''É só esperar a minha rede de colaboradores funcionar. E não se coloca a credibilidade dessas operações todas se não se tem a certeza de que vai acontecer alguma coisa naquela região. Pode escrever'', diz, convicto.

''Acho que é possível que isso aconteça se a prefeitura fizer a parte dela. Se houver revitalização urbana e investimento. Pois se não acontecer isso, só a ação da polícia não basta. No centro há muitas áreas abandonadas que servem de moradia às pessoas de rua'', contrapõe o tenente-coronel Jorge Costa Filho, responsável pelo sistema de narcodenúncia da Polícia Militar. (R.U.)

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Cidade terá dois programas de denúncia

''Não adianta criar vários programas de colaboradores. O 181 está funcionando'', opina sobre a Rede de Colaboração Curitibana o responsável pelo sistema de narcodenúncia estadual, o Tenente-Coronel Jorge Costa Filho, que registrou 111.500 denúncias desde a criação do projeto há cinco anos. ''A primeira questão é a qualidade do sistema. E depois a sua força, o seu respeito. Quando você imprime e o juiz vê que a informação é do 181, ele sabe que foi muito bem apurado.''

Francischini concorda que o sistema funciona muito bem. Porém, entende que existe a necessidade de outro que chegue mais próximo das pessoas. ''Eu quero um passo à frente. Um contato direto com o líder comunitário: ele sabe quem é o traficante, sabe como funciona. Ele não quer se identificar e eu não quero ligação anônima, pois não sei se é falso ou se não é o próprio traficante falando'', afirma o secretário.

''Ele (o secretário Francischini) sabe como funciona o 181. Enquanto estava na Polícia Federal, usou nossas informações várias vezes'', diz o tenente-coronel Costa. ''E é importante lembrar que essa não é uma discussão política, pois toda informação que for em prol do cidadão é bem-vinda.'' (R.U.)

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O crack não distingue classe social

Mauro Frasson
Para o usuário de crack entrevistado, vivemos em um sertão: ‘‘E, tal como lá, aqui temos as regras básicas de sobrevivência’’

O texto que segue é sobre um usuário de crack que, à noite, vagueia com freqüência pelo centro da cidade. Gosta das ruas vazias e considera-se um andarilho. Às vezes, demora três ou quatro dias para voltar para casa e fica sem tomar banho no período. Sobre os que moram na rua diz que são personagens que vivem no limiar entre diferentes realidades e chegou a se apaixonar por um deles. São pessoas que compara a seres medievais.

Cita filósofos com familiaridade e debate suas teorias, usando algumas delas para explicar a noite. A Rua Cruz Machado conhece desde criança. Sobre o crack, que consome há um ano, diz que traz uma sensação passageira, de uns 15 segundos. Conta que uma bucha é vendida a preço tabelado: custa R$ 10. Para fazer um pelotaço, duas, em geral, saem por R$ 15 e três por R$ 20.

Pelotaço é a reunião das pequenas pedrinhas de crack, fumadas em conjunto na lata para potencializar o efeito. A sensação de fumar o crack na lata, que pode ser de refrigerante, ele não considera prazerosa. Entende que é exatamente na sensação efêmera, de ter de buscar a próxima, que reside a vontade para continuar consumindo.

Começou a se preocupar quando notou que estava indo encontrar uma pessoa querida por saber que se cobrasse uma dívida teria dinheiro para comprar mais. Foi aí que se deu conta que precisava voltar a ter um emprego, antes que entrasse em uma preocupação de vender as próprias coisas ou mesmo roubar para poder comprar crack.

Por se trajar com roupas limpas e bem cuidadas, acaba tendo tratamento diferenciado. Por outro lado, é visto como um de fora. Diz que é bem trajado apenas para esse mundo. O mundo do dia, porém, não o vê com bons olhos. O pré-conceito é forte. A diferença para ele, entre o crack e a cocaína, é que o primeiro é mais difícil de esconder o consumo, e entende que o pó está mais alastrado nas classes mais altas. Quando está sujo, na fossa, afirma ser difícil encarar os olhares de indiferença.

Contudo, alguns de seus amigos, que como ele são de classe média ou classe média-alta, também estão no crack. Enxerga a Cruz Machado como a região da prostituição oficializada, como símbolo do escape das coisas. E acredita que muitas pessoas poderosas estejam envolvidas no submundo da noite. Cita várias delas nominalmente.

As pessoas com mais dinheiro, em geral, passam de carro ou carrão para comprar. Com a reforma da Tiradentes, a pressão policial ficou mais intensa e até chega a dizer que está funcionando, pois as pessoas estão começando a se sentir cercadas. Ali, na Tiradentes, era ‘‘o lugar’’ e agora as pessoas ficam muito expostas.

Cansou de ver meninos-usuários com dez ou 11 anos e pensa que é fundamental evitar o contato das crianças com esse mundo. ‘‘Vivemos num sertão. E, tal como lá, aqui temos as regras básicas de sobrevivência.’’ (R.U.)


* Reportagem originalmente publicada no Caderno Curitiba do Jornal Folha de Londrina, do dia 26/06/2008.

Sobre o texto: continuação da reportagem “Aos pés da catedral”, texto do post anterior.

Ponto de partida: a editora do sucursal em Curitiba, Adriana de Cunto, a Drica, pediu que a matéria que aparece no post anterior tivesse um contraponto oficial. Surgiu daí a idéia de entrevistar o secretário Francischini. O depoimento do usuário de crack, que não tem seu nome citado pela reportagem, já fazia parte da proposta original da primeira versão da matéria. A reportagem completa ocupou duas páginas de jornal. O texto do post anterior, a página 01 do Caderno Curitiba, e o deste, a página 03 do mesmo caderno.

A reportagem: a entrevista com o secretário Francischini é base para quase todos os textos desta página, que agora, com a passagem do tempo, me parecem burocráticos. O encontro foi em seu escritório. Para desespero de qualquer jornalista, quando cheguei lá, ele pediu que aguardasse um pouco: segundos depois, entrava na sala a assessora de imprensa da secretaria, que acompanharia toda a entrevista. Assim, a entrevista se torna, necessariamente, mais travada. A presença dela, o lembra, a todo momento, que deve ter de tomar cuidado com o que dizer. Por momentos, ela completa as frases dele ou acrescenta dados que o mesmo não recorda.

O mais difícil da entrevista, porém, seria a própria rigidez do secretário. Muito inteligente, tem suas palavras absolutamente calculadas e só responde o que lhe convém. Algo como: – Qual a sua cor favorita e por quê? – ao que o vendedor de sorvete responde: – Azul. Azul é o nome do novo produto que estamos lançando. É moderno, prático e gelado. Um sorvete dos bons – ou seja, o secretário, insistentemente, exigiu da capacidade questionadora deste entrevistador, necessitando de um esforço especial para que este não apenas abrisse espaço para um discurso pronto. Para evitar conflitos, o secretário estadual, o Delazari, optou por não dar um depoimento, o que é comentado na matéria. Soube depois que eles são amigos e que evitam o conflito midiático.

Repercussão: especificamente sobre esta página, me chama à atenção que Terence Keller, personagem do texto que abre a seqüência iniciada no post anterior (e onde está relatada a repercussão dos dois como um todo), tem no depoimento do usuário-anônimo o momento que mais gostou da reportagem.

Erros, lapsos e confusões: como o secretário Francischini tinha mudado o estilo de sua barba, o departamento fotográfico do jornal optou por fazer uma nova imagem. Foto marcada e feita. Na hora da diagramação, porém, se fez confusão e a imagem que aparece no jornal (e que é reproduzida neste post) é a do estilo anterior, em que o secretário ainda tinha cavanhaque e bigode reunidos. Quanto ao meu texto, um lapso juvenil de gênero (já corrigido na versão que aparece aqui): “uma seminário”.

Aos pés da catedral

Jovem cineasta paranaense adapta para vídeo poema sobre a vida noturna na Rua Cruz Machado

Rafael Urban
Equipe da Folha*

Mauro Frasson
O cineasta Terence Keller enquadrado no plano final de seu filme: a catedral deformada pelo vidro curvo do tubo do ligeirinho


‘‘louca, brilhante, sem fôlego
rua-vício, rua-oximoro
de não ir à parte alguma
de uma miséria ancestral
a cruz machado termina
ao desenlace da esquina
nos pés de uma catedral.’’

Pouco antes dos versos de abertura de seu poema ‘‘Balada da Cruz Machado’’, reproduzidos acima, o poeta curitibano Rodrigo Madeira, 29 anos, cita o escritor francês Charles Baudelaire. ‘‘Tem piedade, satã, desta longa miséria’’. A noite, na rua-símbolo do tráfico de drogas e da prostituição no centro de Curitiba, é representada de maneira poética, mas sem concessões pelo jovem que ganhou o prêmio Helena Kolody de Poesia, em 2006.

‘‘alguém além de Deus e

da polícia e taxistas
e putas e vigaristas
cafetões e travestis
sabe que depois das 20
nas calçadas do acinte
beijam latas os guris?’’


O crack, fumado nas latas citadas pelo poeta, é um dos temas centrais na adaptação, também poética, que o cineasta Terence Keller, 30, faz do texto do amigo Madeira. O filme, também batizado de ‘‘Balada da Cruz Machado’’, foi um dos oito projetos aprovados no Edital de Vídeo Digital, do Fundo Municipal de Cultura, em 2007, recebendo R$ 10 mil para a sua execução. ‘‘Minha intenção é apresentar essa realidade e não um juízo de valores’’, explica Keller. ‘‘Gostei do poema e quero dividir isso com as pessoas. E como, infelizmente, as pessoas não lêem poesia, o audiovisual é o meio que eu acredito que possa alcançar um público maior.’’

‘‘pedra pedra pedra pedra

quem dentre vós que estiver
sem pecado
que fume a primeira pedra.’’


No início do ano passado, Keller conversou com um amigo de Castro, interior do Estado, que lhe disse que lá a situação em relação ao tráfico e consumo de crack estava feia. ‘‘Ele me alertou: ‘Aqui na cidade, as coisas estão difíceis. Especialmente na periferia’.’’ O cineasta comentou sobre essa conversa com o amigo Madeira e, no dia seguinte, recebeu o poema em seu e-mail. ‘‘O texto me impressionou. Ainda que agora com o crack a troca seja ao máximo de saliva e não haja troca de sangue, como nos picos (de cocaína) nos anos 1990, eles (os usuários) estão definhando.’’

A mesma impressão tem um dos donos do restaurante Acrótona, casa de sopas que funciona há 34 anos na Cruz Machado e um dos apoiadores do filme. Depois de trabalhar por 18 anos como barman e depois como gerente, Marco Antônio Pereira comprou o estabelecimento. ‘‘A gente vê aí. As prostitutas chegam lindas. Você dá três meses e a menina está um lixo. Isso (o crack) veio para arrebentar’’, e ele completa. ‘‘Elas vão secando. Ficam sujas, mal-cheirosas. Um descuido total, que elas não vêem, mas, para nós, que estamos observando, nós enxergamos tudo.’’

Tensão nas gravações

As filmagens do curta, que aconteceram entre os dias 10 e 13 de abril, tiveram momentos de tensão. Ao gravar o plano final do filme, uma tomada em que a Catedral da Matriz aparece deformada através do tubo do Ligeirinho na Tiradentes, às 4 horas da manhã de um sábado, a equipe foi ameaçada. ‘‘Nos sentimos seguros durante toda a filmagem e tivemos o apoio de diversos comerciantes da região, mas aquela noite foi tensa.’’

Primeiro, a disputa entre dois grupos de traficantes, que arremessavam uns nos outros as pedras do petit-pavé quebrado pela reforma da Praça Tiradentes. Depois, foram alertados por usuários de que estar com uma câmera era sinônimo de problemas.

Mas a noite ainda traria outras surpresas. Outro grupo, de cinco pessoas, passa pelo tubo do ligeirinho batendo pedaços de madeira no chão e anunciando. ‘‘Se alguém filmar a gente, vão levar ripada.’’ A equipe de filmagem insiste, e segue dentro do tubo na gravação da imagem da catedral. Dois da turma dos pedaços de pau retornam, o que faz com que o cineasta Terence Keller saia para mostrar aos que o ameaçavam o trecho do roteiro que anunciava ‘‘plano da catedral através do tubo do ligeirinho.’’ ‘‘Pô, agora você me convenceu’’, respondeu o líder do grupo.

‘‘pela praça tiradentes

desaguadouro e monturo
de homens sem futuro
traficantes e usuários
usuários traficantes
consumindo a criptonita
qual se todas suas vidas
consistissem num segundo...’’


Num dos planos do filme, um dos atores sobe a Saldanha Marinho descalço, como se tivesse trocado o calçado por droga. Na seqüência, o jovem apareceria fumando crack. ‘‘Só que, na hora em que estávamos filmando a cena, um garoto de 14 anos, descalço e de dedo queimado, veio conversar conosco. Ele me perguntou: ‘Agora ele vai fumar, né?’.’’

O encontro da ficção, da realidade poetizada com a nua e crua do usuário que viu uma cena e entendeu o filme, fez com que Keller refletisse. ‘‘Mesmo contra a vontade do editor, que diz que nem todo mundo vai compreender o que esse garoto entendeu, vou tirar o plano do menino fumando. A sugestão é muito mais forte.’’

Como conclusão da experiência do trabalho que fica pronto entre agosto e setembro, Keller, também responsável pelo Díinamo, ponto de encontro dos cineastas paranaenses às quartas-feiras, é enfático. ‘‘A única coisa que percebi é que esse universo é muito mais acessível e real do que parece. Para nós que vivemos o mundo diurno, parece distante’’, diz. ‘‘Mas essas pessoas que estão lá pensam, sentem e têm opiniões sobre as coisas. E sabem muito mais do que imaginamos sobre as drogas. Afinal, são elas que vivem o problema e que são as maiores vítimas delas.’’

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‘Eles lá e nós aqui’

Rafael Urban
Equipe de filmagem e ator na esquina das ruas Cruz Machado e Ermelino de Leão: encontro da realidade e ficção

''Antes, não tinha shopping e lugar para sair à noite em Curitiba. A turma vinha toda para cá. Quando abriu o (Shopping) Muller (1983), caiu o movimento. E, quando abriram os bingos, caiu de vez'', comenta Marco Antônio Pereira, proprietário da casa de sopas Acrótona desde 2004. Ele considera o seu restaurante um dos únicos estabelecimentos de ambiente familiar que funcionam à noite na Rua Cruz Machado.

Sobre o submundo da noite na rua que termina aos pés da catedral, Pereira diz que a relação é tranqüila, num estilo ''eles lá e nós aqui''. Sobre a influência do ambiente em relação ao movimento de sua casa, avalia que é de 20 a 25%, pois a população fica com receio de ir à Rua Cruz Machado à noite. ''Até o secretário de Segurança do Paraná, o (Luiz Fernando) Delazari, falou que as ruas mais perigosas de Curitiba são a Saldanha Marinho e a Cruz Machado. E isso afeta o público. Um cliente chegou a falar: 'Se o secretário falou, existe'.'' A assessoria da secretaria não soube dizer se o secretário foi o responsável por tal afirmação.

Para o comerciante, a solução é fácil: bastaria uma viatura de polícia permanente na esquina próxima ao seu restaurante, o que, em sua opinião, acabaria com o uso e tráfico de drogas. ''Quanto à segurança, nós, em 36 anos, nunca fomos assaltados. Aqui, à noite, não tem roubos. A questão para eles é a droga, então, se assaltarem, vão prejudicar eles mesmos.''

A fala é reiterada por outro comerciante, que este repórter conversou sem se identificar como jornalista e, por isso, não cita o seu nome. ''Existe um universo de regras que todos que vivem da noite respeitam. Só se dá mal aqui quem vem de fora, que desconhece as regras e acaba fazendo bobagem.''

Há 18 anos trabalhando na Cruz Machado, Pereira, o dono da Acrótona, diz que os tempos mudaram. ''Aqui, o tráfico sempre existiu. Mas hoje é mais enrustido. Antes, era em toda a esquina. Era mais livre e, hoje, mais moderado.''

Apesar das dificuldades, entende que pior que a realidade é a fama que a rua tem. ''Uns falam que é a Boca do Lixo, outros que é ponto de tráfico. E nós sobressaímos a tudo. Criada em 1974, a nossa casa ficou. Esfriou, é fila direto.''

Depois do fechamento da casa, as sobras de sopa alimentam os moradores de rua e usuários de droga da Cruz Machado. ''No final da noite, damos uma sopa para o pessoal aqui. É tarde e eles estão com fome. Dá até dó.'' A partir disso, cria-se um vínculo. ''Eles ficam na deles, mas cuidam da casa também. Não importa o que eles fazem. E eles olham a casa para a gente.'' Mas Pereira pede que esperem na esquina, distante da frente do restaurante. ''Se um cliente me vê com uma dessas pessoas, não volta aqui. Pensa que eu estou envolvido com essa turma. Tenho que manter a distância. É aquela coisa: me diga com quem andas, que direi quem és'', diz. ''É um aviso que dou aos meus funcionários, pois a polícia também não vai saber diferenciar.'' (R.U.)

Leia mais sobre esse assunto na página 3 [no próximo post].



* Reportagem originalmente publicada no Caderno Curitiba do Jornal Folha de Londrina, do dia 26/06/2008.

Sobre o texto: este é longo e tem continuação no próximo post. É o primeiro que escrevi na Folha de Londrina a ser publicado em duas páginas de jornal. Somados os textos, que foram reduzidos, a contagem de caracteres ultrapassava 22 mil.

Ponto de partida: em 2007, formei, ao lado do crítico Carlos Eduardo Lourenço Jorge e do professor e cineasta Eduardo Baggio, a comissão de seleção de projetos para realização de filme digital do Fundo Municipal de Cultura de Curitiba. De toda aquela experiência, o momento mais marcante foi quando o Carlos Eduardo leu em voz alta o poema “Balada da Cruz Machado”. O texto não era apenas brilhante, mas acompanhado de um projeto para adaptá-lo ao cinema que é o melhor que já tive a oportunidade de ler e que recebeu, por unanimidade, a nota máxima.

Mais tarde, conheci e me tornei amigo de Terence. Ele ao lado de Josiane Orvatich são os responsáveis pelo Díinamo, um espaço muito importante que materializou uma possibilidade de encontro entre os realizadores curitibanos. Na noite de dezembro em que conheci o poeta Rodrigo Madeira no cineclube, ele topou e participou de um projeto fotográfico que realizei no últimos dias de 2007.

A reportagem: No texto, reproduzo, entre as várias versões existentes do poema, trechos da que o cineasta optou por usar em seu filme – Madeira publicou uma delas em versão integral no blog Pó&Teias.

Iniciei a reportagem com uma entrevista com Terence, que me contou da produção de seu filme. Semanas antes, acompanhei um dia de gravações e uma das fotos que fiz aparece na matéria. Da conversa surgiu a idéia de irmos à Cruz Machado naquele mesmo dia. Pelas 23h, fui, acompanhado de Terence, à rua. Ainda que o ponto de partida seja o poema e o filme, a discussão chega, evidentemente, ao consumo de crack na região central da cidade.

Lá jantamos na casa de sopas Acrótona e, me identificando como jornalista da Folha de Londrina, conversamos com Marco Antônio Pereira, um dos proprietários do restaurante. Ele sugeriu que retornasse no dia seguinte para falar com seu sócio e com outros comerciantes da região, o que acabei não fazendo, uma vez que a matéria não era investigativa e que, se eu voltasse a dar as caras por ali, minha presença seria logo notada, o que talvez não fosse interessante para a minha integridade física. Na seqüência, andamos pela região e conversamos com outros comerciantes. Falamos com o dono de um boteco – sem me identificar como jornalista –, mas ele logo deu sinais de ficar desconfiado com tamanha curiosidade. Utilizo um trecho da fala dele sem identifica-lo: “A fala é reiterada por outro comerciante, que este repórter conversou sem se identificar como jornalista e, por isso, não cita o seu nome”. O pedido foi do próprio Terence, que sugeriu, com razão, que não seria uma boa contar ao sujeito que eu era jornalista.

Depois, fomos a um dos bordéis da região. Conversamos com algumas das prostitutas que, logo de cara, nos contaram que uma delas era menor de idade. A jovem me contou sua história: a mãe aliciara ela e sua irmã. Via sua terra natal, Antonina, como uma cidade tomada pelo crack, mesmo caso de muitas de suas colegas da noite. Contava que optou pela prostituição aos 16, para poder sair de casa e deixar de ser espancada pelos irmãos, cujas pancadas ainda lhe deixavam marcas. A jovem sugeriu que conseguiu trabalho no local por apresentar uma identidade falsa, em que aparecia como de maior de idade, mas não consegui apurar a veracidade da fala. Tampouco ela me confirmou que, realmente, tinha menos de 18 anos.

Ainda que os depoimentos das mulheres que trabalhavam no bordel tivessem sido interessantes, optei por não utiliza-los na matéria. Por não poder confirmar se a casa realmente estava empregando uma menor de idade, e por não ser investigativo o intuito da matéria, eu e a editora da sucursal curitibana do jornal, Adriana de Cunto, a Drica, optamos por não utilizar a informação. No bordel, mais uma vez, não me identifiquei como jornalista.

Repercussão: o jornalista Luiz Geraldo Mazza elogiou a matéria em seu programa matinal apresentado na Rádio CBN ao lado de José Wille. Drica, a editora da sucursal, me motivou a inscrever a reportagem em prêmios de jornalismo. Paulo Urban, meu irmão, achou que o texto tinha algumas barrigas – momentos truncados – e sugeriu que talvez fosse pelo uso de intercalações com trechos do poema. O cineasta e amigo Terence Keller, personagem da matéria, gostou do texto com ressalvas. Sua parte favorita é o depoimento de um usuário (que aparece no próximo post). Ele criticou algumas imprecisões deste repórter, que serão tratadas no próximo item.

Erros, lapsos e confusões: Terence lembrou este pobre repórter que a heroína nunca veio com força para a cidade, e que os picos dos anos 1990 de que falava eram os de cocaína. Na versão original do texto (que neste blog aparece corrigida) eu completo a fala de Terence erroneamente: “como nos picos (de heroína)...”. Outra é de quando descrevo a ação do momento em que a turma dos pedaços de pau retorna para tirar satisfações. A versão original do meu texto (“A turma dos pedaços de pau retorna”) dá a entender que os cinco retornaram. Porém, Terence me disse que só dois deles voltaram. Na versão que aparece neste blog, corrijo a imprecisão. Além disso, coloquei uma trema que não existe em “Shopping Mueller”.

terça-feira, 24 de junho de 2008

José Carlos Pimenta, sala dois

Ficção

Mais um refresco entre uma reportagem e outra. Segue o meu segundo conto publicado na sessão “Ligeiras”, do Caderno Curitiba

Rafael Urban
Equipe da Folha*

Das coisas que eu mais gostava de fazer na vida, ficar na fila do posto de saúde não era certamente uma delas. Depois, porém, quando parei para repensar sobre aquele dia, tive certeza de que aqueles berros alucinados só poderiam ser um indício de horas de espera não apenas suportáveis como divertidas.

''José, é você'', ouvi alguém chamar pelo meu nome aos prantos. O choro era falso, meloso. O sujeito, notavelmente desconhecido, insistia em me chamar pelo nome de batismo. E eu seguia com a mesma certeza de que não o conhecia.

Aline, Débora, Bárbara. Lembrou até de uma volta no parque no dia em que eu estava em dúvida em qual delas chamar para o baile de formatura. ''Não, não me lembro de você'', respondi à pergunta insistente. Sim, mas Mônica, Jéssica e Gabriela estavam naquele baile também. ''Sim, eu também jamais esqueceria do vestido verde de Jakeline'', comentei. E, claro, era inevitável concordar que o campo nos fundos da casa dos avós de Pablo tinha mais terra do que qualquer outra coisa que o valha. A surpresa foi maior quando recordou de um gol antológico que fiz do meio campo com a canhota. ''Sim, joguei com Huguinho, Bruno e Filipe'' confirmei, convicto. ''Não, não me lembro de jogar contra você'', lhe disse.

Olhei para o lado e peguei a revista Veja que trazia na capa a foto da posse de Geisel. A imagem era uma das famosas do Sérgio Sade, fotógrafo paranaense e criador da editoria de fotografia da revista. Não tive tempo de folheá-la. ''Marcinha? Quem mesmo era a Marcinha?'', tampouco tive tempo de responder à própria pergunta. Claro, Marcinha era a professora de matemática que reprovou o Jorge, aluno dos mais estudiosos da turma. ''Futebol? Tive de abandonar. Não era, como imaginava, um Garrincha.''

A idéia de ler a revista volta à cabeça, mas logo desisto. O moço, desconhecido, estava repleto de lembranças íntimas. Dizer que foi no cinema com a minha irmã foi surpresa das grandes. Foram assistir a um western. Contei-lhe que, hoje, ela gosta dos filmes de caubói do galã Clint Eastwood. E, sim, está casada.

Me surpreendi ao saber que o Wágner agora era pai de gêmeos, que o Juliano tinha se casado duas vezes. Fiquei triste com a notícia de que o Marcos havia morrido em um acidente de trânsito. Ele era um amigo dos bons e eu imaginava que um dia ainda iríamos nos cruzar - quem sabe em Colombo, região metropolitana da cidade, onde, me contaram, o Marcos estaria morando. Relembrando deste dia na fila do posto de saúde, dou risada ao pensar na voz impostada da recepcionista. ''José Carlos Pimenta, sala dois.''


* Conto originalmente publicado no Caderno Curitiba do Jornal Folha de Londrina, do dia 24/06/2008.

É dia de baile

Seja segunda, terça, quarta, quinta, sexta, sábado ou domingo é dia de baile para a terceira idade em Curitiba

Rafael Urban
Equipe da Folha*


Fotos: Diego Singh
‘‘Tem muito idoso que se comporta como criança’’, comenta Luisita Hostins, também responsável pelo controle moral do baile


O baile nem tinha chegado à sua metade, mas a rainha Maria da Conceição Domingues já havia trocado de parceiro de dança mais de dez vezes


O olhar da experiência: Luisa Rubineq, 88 anos de idade e 18 de baile na Comunidade Santo Inácio de Loyola


Enquanto a turma descansa e espera o convite para dançar, a banda exclusiva de bailes da terceira idade segue tocando

Faz 18 anos que Luisa Rubineq freqüenta o baile da terceira idade da Comunidade Santo Inácio de Loyola, ligado à Paróquia Nossa Senhora da Paz no Boqueirão, em Curitiba. Quando Luisa começou a dançar lá todas as sextas-feiras, tinha 70 anos. Do começo da história do baile não se tem a mesma certeza. Alguns dizem que teve seu início há oito, outros que foi há 25 anos. O que se sabe é que eram as freiras que agitavam os primeiros encontros, em uma sala de 60 metros quadrados. Espaço que nem de longe seria capaz de receber as 400 pessoas que se preparam para ir ao salão principal todas às sextas-feiras. ‘‘Acho que veio menos gente hoje por causa do frio’’, comenta Luisita Hostins enquanto conta as fichas de controle no caixa. ‘‘É, hoje foram umas 330.’’

Como outros tantos na cidade, o baile do Santo Inácio é à tarde. Começa às 13h30 e tem horário para terminar: 17h30. Do caixa, Luisita só sai para fazer a reza, às 16 horas. Ela não é apenas o controle financeiro. ‘‘Olha a Luisita aí’’, brinca um senhor ao passar por um casal que trocava carícias no meio do salão. ‘‘Quando o pessoal apronta, eu cobro mesmo: ‘Que coisa! Já cansei de falar. Vamos se vestir com roupa de senhora da terceira idade. Pensa que é menina?’, subo ao palco e falo assim mesmo no microfone’’, explica Luisita. ‘‘Tenho que manter o ambiente familiar, sabe?’’

A reclamação mais freqüente que tem recebido nas últimas duas semanas é a do aumento no preço da entrada, que de R$ 4 foi para R$ 5. Para o cachê da banda Musical JB, exclusiva de bailes da terceira idade, a organização gasta R$ 300 a cada sexta-feira. ‘‘Aqui é o melhor baile que a gente toca. As músicas são de vários estilos, mas é mais gauchesca mesmo. É o que a turma mais gosta.’’

Apesar do comentário do vocalista João Batista Barros, que começou o grupo com os dois irmãos há cinco anos para fugir dos shows noturnos, o repertório é eclético e chega até a Jovem Guarda de ‘‘Era um garoto...’’, na versão de Os Incríveis.

Erotides de Oliveira Correia, 74, e João Pedro Schreiber, 82, são dos mais animados e dos poucos que não dançam apenas de corpo coladinho. Ele, por vezes, se equilibra em um pé só. Também dançam juntos, fazem pose e dramatizam. O casal se conheceu há oito anos, em um baile de uma igreja em Araucária. ‘‘Minha esposa faleceu há dez anos. E foi logo depois que conheci a Nena.’’ Erotides tem o mesmo apelido da ex-mulher, o que facilita a vida de Schreiber. ‘‘Chamo ela de Nena 2. É o meu anjo.’’ Ela ri do comentário.

Ele foi soldador. Ela tinha o pai que tocava gaita e desde pequena, quando vivia na roça, teve contato com a música. Trabalha até hoje de benzedeira, tradição que sua mãe lhe deixou pouco antes de morrer e que está na família desde a sua avó. ‘‘Canta, canta Carolina, quando tem vontade de chorar’’, exclama Erotides ao confundir a primeira estrofe de sua música favorita, e uma das mais repetidas no baile. A preferida de seu marido é ‘‘Olhos Verdes’’, de Amado Batista, que Schreiber lembra em homenagem à cor dos olhos de sua amada. ‘‘Mas esses olhos verdes que tanto me atraem, me sinto contigo criança de novo, menino de mais.’’ Mal param de falar com este repórter e lá estão eles, saracoteando de novo.

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Idosos adolescentes

''Aqui no baile só entram maiores de 50'', comenta Luisita Hostins, que além de controle moral é a coordenadora do Grupo da Terceira Idade da comunidade. ''Se for homem mais novo, eu pergunto se ele vai dançar com todas ou uma só, pois elas gostam se eles vêm. Agora, se é menina mais nova, só entra se tiver acompanhada, pois as senhoras morrem de ciúmes'', diz. ''Se eu deixar entrar, só dão bola para elas.''

Por razão parecida, Luisita evita deixar entrar com roupas ousadas, que acabam chamando à atenção e ganhando muitos parceiros no baile. ''Tem muitos idosos que se comportam como criança, sabe?'' Os casais dançam e trocam de parceiros com freqüência, mas é difícil ver um beijo no salão.

''E, quando o pessoal começa a forçar a barra, eu digo: dá uma segurada nos beijinhos'', explica seus métodos Vicente Nunes dos Santos, segurança do baile há seis meses. Avalia o trabalho como tranqüilo, mas no mês passado quase teve bronca quando uma senhora chegou e viu o esposo dançando com outra. ''Aqui vem bastante gente que é casado e conta para o companheiro que vai ao médico ou ao hospital visitar um amigo. Tudo para dar uma escapada.''

Ainda não são quatro da tarde e a rainha do baile, que recebeu a faixa em eleição popular em setembro, está um pouco cansada. ''Agora já não me lembro mais, mas já dancei com mais de dez'', conta a requisitada Maria da Conceição Domingues, 81 anos de fôlego. Ela dança na segunda, terça, quinta e sexta-feiras. Na quarta, tem encontro com o grupo de artesanato e, a cada quinze dias, também vai ao Santo Inácio aos domingos, no baile aberto para todas as idades. ''Eu danço a semana inteira'', diz a octogenária sem usar figura de linguagem.

Foi um incidente com a rainha que levou Luisita ao microfone desta vez. ''Pessoal, quando estiverem dançando, cuidado para não machucar ninguém. Cuidado ao dar um passo para trás'', suspira. ''Hoje aconteceu com a nossa velha Conceição. E saiu sangue'', suspira. ''Foi o salto de alguém que pegou na perna dela. Cuidado, somos todas da terceira idade. Vamos dançar com calma.'' Luisita, 56, veste roupa preta discreta e um cachecol cor-de-rosa. Parou de dançar há dois anos, quando faleceu Abelardo, seu marido.

Dança e oração

''Se não vierem rezar, não tem lanche hoje'', exclama a organizadora do salão. São poucos aqueles que permanecem. A maioria já está do lado de fora e nos fundos, fazendo fila para o lanche, que é servido depois da reza. ''Tem algum Antônio? Hoje é dia de Santo Antônio.'' Ela conta os Antônios presentes: um, dois, três, quatro. Com a insistência, a turma vem para a frente do salão. Juntos, todos cantam parabéns aos homônimos do santo e aos aniversariantes. Em semicírculos, os presentes ficam lado a lado e começam com um Pai Nosso. Depois, de mãos dadas, rezam três Aves Maria em conjunto. Um Santo Anjo é o zeloso guardador do lanche, que vem na seqüência.

''Levamos cinco horas para fazer e, em dez minutos, não tem mais nada'', comenta a cozinheira Marina Santa Fermin, que chega às 5 horas da manhã para preparar o lanche. São 35 quilos de farinha e um total de R$ 150 em ingredientes. Em pouquíssimo tempo, as bandejas realmente ficam absolutamente vazias.

A reza que acontece antes é uma relação direta com a igreja. Luisita explica que o baile está tendo dificuldades com a paróquia. ''Falo para o padre que sempre peço para o pessoal se comportar ao sair do baile. Ao menos até chegar ao ponto de ônibus. Para muita gente, tem sem-vergonhice aqui. Mas, como você pôde ver, é um ambiente familiar.'' O Padre Erno, responsável pela paróquia Nossa Senhora da Paz, foi contatado pela FOLHA, mas preferiu não comentar o caso.

Às 17h27, a banda encerra a última música. Antes das 17h30, já não há pessoas no salão. Luisa Rubineq, a senhora de 88 anos que aparece no começo desta história, é a mais idosa do baile. Ao final, ela conclui. ''Até cansei. Foi muito bom.'' Pergunto se teve parceiro para dançar. ''Parceiro? Ah, para mim sempre tem.'' (R.U.)


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Alguns bailes da terceira idade em Curitiba:

- Clube Recreativo Dom Pedro II
Às terças, das 16h30 às 21h30
Rua Brigadeiro Franco, 3.662, Rebouças
3332-8865
Entrada a R$ 7 (inclui buffet de sopa)

- Comunidade Santo Inácio de Loyola
Às sextas, das 13h30 às 17h30
Rua Joaquim de Freitas, 341, Boqueirão
3286-8228
Entrada a R$ 5 (inclui lanche)

- Fascinação Festa & Dança
Aos domingos, das 17 às 22h30
Rua Monteiro Tourinho, 428, Bacacheri
3256-6591
Entrada a R$ 12 (inclui lanche)

- Sesc Centro
Às quintas, das 15 às 19 horas
Rua José Loureiro, 578, Centro
3233-7422
Entrada a R$ 3,50 (comerciários) e R$ 4,50 (não-comerciários)

- Sesc Água Verde
Às quartas, das 13h30 às 17h30
Av. República Argentina, 944, Água Verde
3342-7577
Entrada a R$ 4 (comerciários) e R$ 5 (não-comerciários)

- Sociedade Beneficente Recreativa
Às segundas e quintas, das 13 às 18 horas
Rua Anne Frank, 4.211, Boqueirão
3286-1477
Entrada a R$ 4

- Tradição Show
Às quartas, das 14 às 18 horas
Aos sábados, das 14 às 17h30
Rua Zonardy Ribas, 686, Boqueirão
3286-6389
Entrada a R$ 3


* Reportagem originalmente publicada no Caderno Curitiba do Jornal Folha de Londrina, do dia 24/06/2008.

Sobre o texto: esta é paixão antiga.

Ponto de Partida: foi em uma oficina de Jornalismo Cultural com Nilson Monteiro, em 2006, que nasceu a idéia desta matéria. Lá estavam os amigos jornalistas Estelita Carazzai, Danilo Amoroso e Karla Gohr. Juntos, pensamos em uma pauta sobre um baile da terceira idade, que sonhávamos em fazer um dia. Como exercício, desenvolvemos individualmente um texto de como, supostamente, seria a reportagem. A minha terminava assim, em uma quase homenagem ao Tchekhov de “Estória Alegre”: “Há sete anos comemoram o encontro. Entram, dançam com outras pessoas e, em determinado momento não estipulado pela lógica tradicional do tempo e espaço, trocam um olhar e revivem o grande momento de suas vidas. Ele diz a frase como se fosse pela primeira vez e ela não titubeia: ‘Aceito’.”

Mais recentemente, conversei com Anita, que cuida da casa de meu pai. Ela me contou do baile da Comunidade Santo Inácio e de como a Luisita dava os limites à festa. O que reviveu a idéia e a vontade de fazer uma matéria sobre aquele universo.

A reportagem: Anita, o meu contato com o baile, não sabia nem o telefone tampouco o endereço do baile. “Mas sei chegar lá. Você me encontra no Terminal do Boqueirão e vamos juntos.” Anita não tinha celular, mas combinamos a data: uma sexta-feira. Marquei no jornal com o fotógrafo e motorista, mas eu estava morrendo de medo de não a encontrarmos no terminal e ficarmos a ver navios. Chegamos no terminal de ônibus e lá estava ela, toda enfeitada para ir à festa.

Enfim, chegamos ao baile. O carro do jornal gerou, de cara, um bafafá. Mas a turma veio logo falar conosco com uma baita disposição. O Diego Singh fotografou numa boa, mas volta e meia vinha um marido ou esposa que estava ali escondido do seu par para pedir que não o fotografasse. Uma senhora, inclusive, pediu que eu parasse com a reportagem. “Pô, se meu marido descobre, fico sem ele e sem o meu carro. Você filmou o meu carro?”. Foi divertido e o pessoal foi muito solícito e disposto a conversar. O casal Erotides e João Pedro é divertidíssimo e contou muitas histórias. O João Pedro foi dado como morto e parou de receber o INSS: foi confundido com um homônimo que tem o pai com mesmo nome e sobrenome e mãe de mesmo nome, mas sobrenome diferente. Algumas senhoras reclamaram que eu só ficava de papo e não estava tirando nenhuma delas para dançar.

Repercussão: as amigas de minha mãe, freqüentadoras assíduas de bailes, aprovaram a matéria, mas não gostaram do comportamento de Luisita. A Vera, que mora aqui no meu prédio, disse: “Como assim? Que controle todo é esse?” Disseram, também, que nos bailes da terceira idade rola pegação e que não tem essa história de não poder dar beijos no salão.

Erros, lapsos e confusões: segundo o dicionário, “octagenária” não existe. O correto é “octogenária”.

quarta-feira, 18 de junho de 2008

Histórias de outros invernos

Segundo a Astrologia, o inverno chega na sexta-feira, às 20h59. Mas, com a ajuda do La Niña, não deve vir com muita força

Rafael Urban
Equipe da Folha*


Theo Marques
Maneco Doria acredita que a pasteurização diária, passando do frio ao calor, faz o curitibano ter longa vida

''Cinco horas da tarde e está escuro desse jeito!'', reclama um senhor com seus cinqüenta e poucos anos ao sair da Biblioteca Pública do Paraná de guarda-chuva em punho e cachecol no pescoço. Nos três minutos seguintes do fim de tarde frio e chuvoso, passariam 74 pessoas protegidas com seus paráguas na mão pela Rua Cândido Lopes. São capotes, bonés e um, desprevenido, veste bermuda. ''A coisa que mais me chamou à atenção quando cheguei em Curitiba é que parece que o pessoal daqui não sente frio. Mesmo com vento gelado, as meninas usam camiseta de barriga de fora!'', exclama o marceneiro gaúcho Orli Bianchin, que mora na cidade há seis anos.

Na sexta-feira, às 20h59, chega, oficialmente, o inverno. Mas, apesar das baixas temperaturas dos últimos dias, o paranaense pode ficar tranqüilo: ele vem mais ameno que o do ano passado. ''E será, a princípio, um inverno típico. As chuvas com normalidade ou até ligeiramente abaixo'', explica Lizandro Jacobsen, meteorologista do instituto tecnológico Simepar.

Sua dissertação de mestrado foi sobre El Niño e La Niña, grandes responsáveis por alterações climáticas. Esta última terá relação direta com as temperaturas do Estado nos próximos meses. ''La Niña provoca passagens mais rápidas de frentes frias. E não tendo o suporte de umidade, encontrando esse ar mais seco, evita (sua permanência)'', explica.

O veranico de maio, que nem sempre acontece no mês, desta vez foi na segunda quinzena. Causado pela ausência de chuvas prolongadas, ele fez com que as temperaturas ficassem mais altas, um clima típico de outono.

De outros invernos

Manoel Doria, o seo Maneco Doria, nasceu em Capinzal, no Vale do Rio do Peixe, em Santa Catarina. Considera-se portador de dupla cidadania estadual, pois, aos dois anos, foi morar em Palmas, interior do Paraná, cidade que considera a mais fria do Estado. Foi lá que passou o inverno mais gelado de sua vida. ''Tinha quatro anos e me lembro muito bem. E olha que, quando criança, a gente sente menos frio.''

Da infância, Maneco, publicitário e diretor de relações públicas do Clube Curitibano, também lembra das fotos da neve de 1928 que seu pai, médico militar, lhe mostrava. Em 1975, na manhã de julho guardada na memória de muitos curitibanos, abriu as janelas e viu a cidade toda branca. ''Foi motivo de festa. Parecia festival.''

Naquele dia, Doria foi na inauguração de uma indústria de tecidos alemã na Cidade Industrial de Curitiba. Com a ajuda do tradutor, perguntou ao presidente da empresa o que ele tinha achado da neve curitibana. ''Tão boa quanto a nossa'', lhe respondeu.

O frio extremo, porém, nem sempre tem clima de festa. Na nevasca gaúcha de 1965, o marceneiro Orli Bianchin tinha 17 anos. ''No primeiro dia, tava todo mundo brincando e faceiro. O que no começo foi alegria, depois virou desespero.'' Lembra que, em Lagoa Vermelha, sua cidade natal, com o peso da neve, várias casas vieram abaixo.

Foi em um dia com neve a meio metro que nasceu a catarinense Anita Duarte, moradora de Curitiba há 22 anos. ''Quando olham para a minha identidade, comentam duas coisas. Que sou filha de um Luis Inácio da Silva e que sou da cidade fria.''

Anita, 66, nasceu em São Joaquim, onde morou em uma casa com forno a lenha, e conta que já passou diversas vezes por baixíssimas temperaturas. Diz que em Curitiba é frio, mas como já passou muito por isso não estranha. Conta também que no Paraná não é tão gelado como em Santa Catarina. ''Antes, era inverno direto. Agora é misturado: inverno e calor juntos.''

Às 7h15 de uma sexta-feira, no vestiário do Clube Rio Branco, no Boa Vista, as mulheres, com idades entre 50 e 55, reclamam da baixa temperatura. Da turma da hidroginástica, Anita é a mais velha, mas conta que tem 50. ''As outras são todas paranaenses. Não adianta, elas não se acostumam. Nem tava frio.''

O publicitário Maneco Doria, que também é músico e artista plástico, entende que os paranaenses têm uma vantagem sobre os moradores de outros Estados. ''Como temos as quatro estações em um dia, estamos pasteurizados. É como no processo do leite, que passa pelo quente e depois pelo frio e que permite que fique firme por um longo tempo.'' Doria acredita que essa experiência diária permite que aquele que more aqui tenha condições de viver por mais tempo.


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Pés de café na Capital

Letícia Moreira

Para não riscar os carros, a sugestão de Omar Cezario que plantou café no Centro Cívico é de aparar os pés com certa freqüência

O agrônomo Wilian Ricce, pesquisador da Agroconsult, sentencia. ‘‘Pelo risco que calculamos, é inviável. Não tem como ter uma produção comercial de café no Sul do Estado.’’ A avaliação mostrada no mapa desta página sugere que as cidades em verde são aquelas próprias para o cultivo de café, pois sofrem geadas esporádicas: no máximo uma a cada quatro anos.

O bancário Omar Cezario não leu as regras e tampouco o estudo de Ricce. Nos anos 1970, trabalhava como instrutor de crédito rural do hoje extinto Bamerindus. Por isso, viajava com freqüência ao Norte do Estado. Veio para Curitiba com o pai Odilon, com quem vivia em Jaguapitã. Em uma das viagens ao Norte, o pai lhe fez um pedido especial: que lhe trouxesse pés de café na bagagem. O pedido que muitos levariam com assombro, Cezario levou com naturalidade e, de Marialva, trouxe ‘‘trinta e poucas mudas’’.

Plantadas no final dos anos 1970 no fundo da casa em que viviam na Rua Augusto Severo, no Centro Cívico, nem todas sobreviveram. ‘‘Conforme a geada, queimava um pouco. Mas os prédios em redor as protegiam’’, explica Cezario.

O pai, Odilon, faleceu há seis anos, com 96. Até os 90, cuidava dos 12 pés de café sobreviventes e hoje um tanto abandonados. ‘‘Tomei café de lá por muitos anos. Depois da morte do pai, deixei um pouco de lado. Quem mora lá hoje é meu sobrinho.’’

Cezario, 68, explica que colhia café todos os anos, mas, em 2007, teve uma surpresa. ‘‘Quando fui colher, já tinham feito o trabalho para mim. Alguém entrou na casa e levou toda a produção.’’

O trabalho do sobrinho Dilvan Gracino, neto dos músicos Belarmino e Gabriela, é de cortar os pés, que, quando ficam muito grandes, riscam os carros. ‘‘Ah, mas se ele plantava para consumo próprio e em uma área protegida eu até acredito. Quero ver ele plantar um hectare inteiro’’, brinca o agrônomo Ricce. (R.U.)


* Reportagem originalmente publicada no Caderno Curitiba do Jornal Folha de Londrina, do dia 18/06/2008.

Sobre o texto: foi curioso ver a foto que ilustra a matéria: a fotografia de seo Maneco Doria mais parece uma imagem publicitária.

Ponto de Partida: o pedido da pauteira Maigue Guets foi o de fazer uma matéria sobre o inverno, contando um pouco como seria o deste ano. Sugeri que conversássemos com moradores de longa data na cidade. Sugestão que foi acatada.

A reportagem: estava na frente da Biblioteca Pública aguardando um personagem de outra matéria com quem tinha marcado uma entrevista. Com a chuva, fiquei fascinado com a quantidade e variedade de guarda-chuvas que passavam ali na frente e, efetivamente, fiz a contagem que resulta em 74, número que aparece na matéria. Pouco depois, no mesmo período de espera, conversei com o marceneiro Orli Bianchin, que aguardava a chuva passar e que acabou virando um personagem da reportagem. A jornalista Marcela Rocha Mendes, colega de redação, sugeriu que eu conversasse com o seo Maneco Doria, com quem havia trabalhado no Clube Curitibano e que acabou sendo um dos principais personagens.

Repercussão: a pergunta que mais ouvi foi: “Você realmente contou por três minutos quantas pessoas passaram de guarda-chuva?”

Erros, lapsos e confusões: aqui, uma situação engraçada. Na mesma semana, a Gazeta do Povo, jornal de Curitiba, publicou uma reportagem, com outro meteorologista do Simepar (mesmo instituto que consultei), que sugeriu que o inverno seria um pouco mais frio que o do ano passado. O que não é verdadeiramente um lapso, mas uma sugestão de que eu poderia ter recorrido a mais fontes.