A festa é da poodle toy, mas a família Merlin comemora ao ver a Vovó Lourdes, que sofre de Mal de Parkinson, em atividade
Equipe da Folha*
Fotos: Diego Singh
Fifi acompanha Vovó Lourdes em todas as atividades. Ela protege a sua dona e os amigos alertam: ‘No colo ela é um perigo’
A dona oficial da cachorrinha é Maria de Lourdes Merlin, 86 anos. No começo de 2000, vovó Lourdes estava triste e deprimida. Na casa construída por seus pais, Luiz e Virginia, os únicos animais restantes eram aqueles que viviam em sua lembrança: Cravinho, Violeta e Piri. Depois de um derrame, da chegada do Mal de Parkinson e de uma ponte de safena no coração, Lourdes estava sem motivações para seguir adiante. Isabel, sua irmã, pediu que sua sobrinha Virginia escutasse sua prece: ela queria um cachorro.
Fifi veio dentro de uma sacola trazida de ônibus por Nilce Firmino de Cruz,
Desde então, ano após ano, comemoram o aniversário da Fifi. ‘‘O cachorro é só uma desculpa. A idéia é motivar a avó e também recolher doações. Acredito piamente que ela tem na Fifi a motivação para viver’’, conta Ewalda Stahlke, dermatologista, que é amiga da família há mais de 20 anos e ocupa o cargo de ‘‘palpiteira oficial’’ nos preparativos para a festa que começam 30 dias antes.
Ao invés de presentes, o convite pede que se leve dois quilos de ração para serem doados aos mais de 800 cães e gatos da Sociedade Protetora dos Animais de Curitiba, a qual vovó Lourdes ajuda há décadas e que foi escolhida para receber os donativos deste ano. Os 80 convidados levaram 243 quilos de ração.
Borboleta
As festas, sempre temáticas, já passaram por ‘‘circo’’, ‘‘praia’’ e ‘‘anos 50/60’’, em que um conhecido fez as vezes de Elvis cover. Os gastos, por sinal, são mínimos e sempre contam com a ajuda de amigos e familiares que se tornam voluntários. O tema deste ano foi eleições. ‘‘Sempre escolhemos algum assunto que a minha mãe goste muito’’, comenta Virginia Merlin, 50, que tem duas irmãs e um irmão.
‘‘Não é uma festa para cachorro, mas uma festa beneficente para arrecadar fundos para cachorros carentes’’, diz Virginia. ‘‘É uma reunião de amigos’’, completa vovó Lourdes. Do tema eleições, estabeleceram uma decoração a partir do símbolo de uma borboleta, o partido da ‘‘cãodidata’’.
Ao chegar na casa, cada um dos convidados recebia uma pequena cédula de papel para deixar uma mensagem e confirmar o seu voto na candidata única Josephine Merlin, do Partido Borboleta. ‘‘Um animal alegre e colorido, que voa de galho em galho como um político troca de partido’’, explica a filha Virginia.
Ao fundo, toca a ‘‘Marchinha para Vovó Lourdes’’, um presente de Reinaldo Godinho, que já fez diversos jingles para campanhas políticas. ‘‘É Josephine aqui, é Josephine ali, é Josephine lá! No colo da Lourdinha, ela é preta, do Partido Borboleta.’’ A música se alterna com uma gravação do carro dos sonhos, esses também vendidos por políticos.
Por toda a casa, preparada para a festa em seu interior e exterior, foram distribuídas pequeníssimas borboletas de papel, feitas uma a uma pela dona da aniversariante.
A terapeuta ocupacional Sara Dias Sampaio explica que os preparativos começam 30 dias antes
‘‘Nesses 30 dias, fazemos, eu e Vovó Lourdes, uma série de projetos para a festa’’, diz a terapeuta ocupacional Sara Dias Sampaio enquanto aponta para um quadro bordado por Lourdes
'Ela é a terapia da minha mãe'
Virginia Merlin com o esposo Iran Longhi. Ao invés de presentes, convidados levam ração para ser doada à Sociedade Protetora dos Animais
Na época em que vovó Lourdes ainda não estava de cadeira de rodas, ela passeava com a fisioterapeuta Mônica Lúcia Zanetti, que levava Fifi no bolso do jaleco. O começo foi difícil, pois ao chegar perto de Lourdes a pequena atacava. ''Tivemos de conquistar a cachorrinha para se aproximar de dona Lourdes. A presença da Fifi junto nas sessões estimula muito ela. Melhorou 1000%'', explica a fisioterapeuta.
A importância da bolinha preta e peluda nesta história é valorizada pela neurologista Teresinha Lissa, 50, médica de Lourdes, também presente na festa. ''Qualquer estímulo é importante. Ela transfere a parte emocional para o cachorro'', comenta. Em sua própria família, Teresinha tem um exemplo próximo. ''Quando via o cachorro, minha mãe voltava à realidade. Era o seu 'fio terra'.''
Bianca Valente, 24, filha da médica, lembra de um dos momentos que considera mais emocionantes. Diva, sua avó, estava com um estágio muito avançado do Mal de Alzheimer e não reconheceu nem a filha tampouco a neta. ''Quando apontamos para o nosso cachorro, ela disse: 'Esse eu sei quem é, é o Tequila'.''
''A Fifi é a terapia da minha mãe'', comenta Virginia, filha de Lourdes. ''Quando ela está confusa, adora ler o pedigree'', conta sobre o documento em que aparecem os antepassados de Josephine Merlin. Para Sara, terapeuta ocupacional, ''o envolvimento da família é motivador e muito importante. E por isso dá resultado''.
''Quando pego a agenda de telefones da mãe, parece obituário. Os amigos ou estão mortos ou deixados de lado em um depósito de gente. A minha mãe tem qualidade de vida'', conta Virginia, que mora com Lourdes, Fifi e com seu esposo Iran Longhi, que também adora a cachorrinha. ''Ele é o irmão mais velho dela'', brinca. (R.U.)
A festa de Fifi também traz lembranças de uma época em que os cachorros Gibi, Peninha, Fuço-preto, Fraulein Bambi e Fraulein Hipelmouse passeavam pela residência.
''É um reviver de nossa infância'', comenta Virginia. Galileu, seu falecido pai, organizava as festas no dia das crianças, um aniversário para os animais e bonecas em que se reuniam os amigos.
O convite era feito em nome dos cachorros e tinha direito a um carimbo especial. ''Pegávamos a patinha do nosso cachorro, molhávamos no barro e marcávamos no papel'', recorda.
As festas eram regadas a docinhos em formatos de bichos e a dois engradados de refrigerantes Hugo Cini: gengibirra e gasosa de limão ou framboesa que Galileu ia buscar na fábrica na rua Visconde de Guarapuava. (R.U.)
Em 2006, um chinês em passagem pela cidade foi até a festa de Fifi. Ficou encantado e fotografou cada detalhe. ‘‘No meu país comemos cachorros. Aqui vocês fazem festa’’, recorda Sara de uma fala do inusitado convidado.
Ele contou que não come cachorros. ‘‘Mas não deixamos a Fifi dando sopa não’’, brinca a dermatologista Ewalda Stahlke.
Na festa deste ano, um cartaz anunciava: ‘‘Chega de cachorro-quente’’. Virginia explica: ‘‘Ter hot dog em festa de cachorro seria mau gosto. Não combina.’’ (R.U.)
Sobre o texto: Uma festa que me pegou de surpresa.
Ponto de partida: Entrevistava Igleide Araújo de Almeida, proprietária da Dogtour, agência de viagens para donos que gostam de cruzar o País com seus animais. A conversa foi para outra reportagem, que batizei de “Para animal algum botar defeito”, em que falo de serviços para os bichos na cidade – de cemitério especializado a hospital 24 horas. Igleide comentou de sua grife de alta costura para os caninos, a Flavinha Fashion, e contou que sabia de uma cachorrinha que tinha sua festa de aniversário todos os anos na cidade. Demonstrei interesse e ela me entregou um xerox com uma reportagem de uma revista sobre idosos que falava do acontecimento no ano passado. Disse também que os convidados levavam seus cachorrinhos ornamentados com vestimentas chiques. A surpresa foi descobrir que a festa acontecia em outubro quando já era outubro.
A reportagem: A expectativa, então, era encontrar uma festa dedicada a cachorros – cheguei a conversar com uma jovem especializada em fazer bolos e doces para festas de bichos. Entrei em contato com Virginia Merlin, a responsável pela organização do aniversário. Ela parecia bastante receosa, mas concordou que eu fosse cobrir a festa com a condição de não citar o endereço da residência na reportagem – pedido que ela repetiria mais duas vezes.
Cheguei à residência em dia de festa junto com o fotógrafo Diego Singh. Virginia nos recebeu na porta. Muito simpática, logo pediu que Sara, a terapeuta ocupacional citada na matéria, nos apresentasse a festa. Não havia outros cachorros – a única vez que eles foram convidados foi uma bagunça só, com direito a briga e tudo, como me contou Jussara Elias, sobrinha de Lourdes. Mais do que isso, a festa tinha um propósito muito claro e relacionado à terapia ocupacional: motivar vovó Lourdes.
Foi emocionante ver o afeto da família. A título de exemplo, no jardim, construíram estruturas de modo que, mesmo de cadeira de rodas, Lourdes consiga cuidar da horta. As borboletas de papel, feitas uma a uma em um pequeno cortador com forma (não consigo pensar no nome do objeto) estavam por todos os lugares externos e nos vários os cômodos da casa. Amigos trouxeram tudo o que encontraram com borboletas e esses objetos decoravam a casa. A família, inclusive, dormiria naquela noite com pijamas com estampas do inseto e deitaria em travesseiros recapados de fronhas com desenhos de borboletas.
Cheguei a pegar Fifi no colo, mas ela não sossegou. Ela tem os pelos sob a boca brancos graças ao cloro. Segundo contagem de Iran (o irmão mais velho), ela dá 80 lambidinhas a cada vez que toma água. Conversei com muitos amigos e familiares – Virginia, como Ewalda elogiou em certo momento, tem uma capacidade fascinante de sinergia para reunir as pessoas. O complicado de ter tantos depoimentos interessantes é que, no final da história, muitos ficam de fora. A especialista em odontologia veterinária e dona da clínica Odontocão, Maria Izabel Valduga, que não é citada na reportagem, me contou que acompanha os dentinhos de Fifi desde quando era um bebê. “Ela recebe ração, que é o adequado, mas tem muitos ‘agrados’”, confidenciou.
Fiquei na festa das 17 horas até pouco antes da meia-noite, quando, por fim, consegui escutar as histórias de Virginia – que não parava um minuto durante a festa. O bate-papo com Iran, seu esposo, também foi muito interessante e descobri que ele conhecia meu pai, Polan Urban, de quem lembrou com muita alegria. Iran, inclusive, já foi candidato a senador. Virginia achava que o esposo, que é administrador, não ia conseguir muitos votos – pois fez mais de 50 mil e ainda recebeu a ligação de uma fã que, depois de tê-lo visto na TV, desejava casar com ele. Já a conversa com vovó Lourdes foi bastante breve, mas fiz questão de colocar ao menos um pouquinho de sua fala na reportagem. Devido ao Parkinson, ela se comunica com bastante dificuldade, ainda que mantenha um discernimento muito grande sobre o que passa à sua volta.
Repercussão: “Linda, linda, a reportagem ficou linda.” A ligação que recebi de manhã de Virginia Merlin foi um enorme alívio. “Estamos nos revezando aqui na leitura. É impressionante como você é detalhista”, elogiou. Eu estava muito preocupado com o conteúdo da matéria, uma vez que tratava de assuntos muito pessoais e delicados. Virginia me tranqüilizou.
No dia anterior, quando terminava de escrever, pensei em ligar para ela e pedir para que ouvisse a versão final da reportagem. Como regra geral, não aceitamos pedidos de se ter acesso ao conteúdo antes da publicação, por uma razão muito clara de liberdade para se desenvolver o trabalho. A única vez que mostrei um trecho de uma reportagem antes de sua publicação foi quando pedi a Ana Pasinato Niculitcheff, filha de Valêncio Xavier, que me dissesse se estava delicado o modo como eu falava da doença de seu pai. Ela assentiu. Naquele momento, como já tratei em post anterior, todos os amigos do escritor recomendaram que eu não citasse a doença.
Neste caso, mais uma vez, penso que seria natural pedir o acompanhamento da família. Verdadeiramente, não o fiz, pois dois editores leram a reportagem na redação e me disseram que não havia por que se preocupar, uma vez que o texto era bastante respeitoso. Houve, também, uma questão crucial e freqüente no jornalismo: o horário do fechamento estava por chegar e o tempo se esvaía.
Para não perder de vez a temática desta parte do post, conto que a reportagem surpreendeu alguns colegas de redação, que dias antes pareciam espantados sobre a temática da festa, que, por fim, era muito distante de sua aparência inicial.
Erros, lapsos e confusões: Rodrigo Neppel, editor do Caderno Curitiba na redação de Londrina, decidiu dar um tom mais dramático à gravata (o subtítulo) adicionando o “Mal de Parkinson”, que não aparecia no meu texto original. Porém, se confundiu e escreveu “Mal da Parkinson”, o que já aparece corrigido neste blog. Neppel, por sinal, é um editor muito interessado e extremamente atencioso, além de um dos jornalistas mais respeitados na Folha de Londrina.
Os textos, inclusive, depois da edição, seguem bastante fiéis à versão que escrevo, salvo apontamentos que, em geral, tornam as matérias mais fluídas. Isso, porém, é regra no Curitiba, que é um caderno que permite um espaço de texto maior e que, salvo quando se escreve demais da conta, o que faço com relativa freqüência, não há necessidade de cortar parágrafos. Já nos cadernos diários, os textos sofrem mudanças mais bruscas e cortes grandes de tamanho. Posso dizer que já sofri isso na pele e não é das experiências mais agradáveis. Voltando ao Neppel, depois de ler a matéria, ele comentou. “Agora, até eu estou gostando da Fifi. Achava que era outra coisa a festa.”
Quanto às fotos, uma das legendas foi trocada. A idéia é que o texto ilustrasse uma imagem em que aparecia um cartaz na porta de entrada com os dizeres: “Consultório para quem sofre de cachorrite.” Reproduzo abaixo, a foto e a legenda como foram publicadas no jornal.
A decoração estava por toda casa. Na porta de entrada, uma brincadeira com os doentes por cachorro