quinta-feira, 26 de junho de 2008

À Giuliani

Com quatro meses no cargo, o secretário Fernando Francischini, que se espelha no ex-prefeito de Nova York, fala do novo perfil de traficantes e promete o fim da cracolândia até o final do ano

Rafael Urban
Equipe da Folha*

Theo Marques
‘‘O mais difícil foi esperar três meses para andar armado’’, diz o secretário Fernando Francischini, que entrou no exército aos 17 anos


A vontade de entrar no Exército era tanta que, aos 17 anos e nove meses, Fernando Francischini se alistou. ''O mais difícil foi esperar os três meses para poder andar armado.'' Londrinense, Francischini é formado em Direito e foi oficial da Polícia Militar antes de comandar um pelotão da Rone. Hoje, aos 38, carrega a experiência de 12 anos como delegado da Polícia Federal. ''Tentáculos'', ''Março Branco'', ''Ícaro'' e ''Zapata'' foram algumas das principais operações da PF dos últimos anos. Francischini estava por trás de todas elas.

Antes de assumir a Secretaria Antidrogas Municipal (SAM), que completou quatro meses no último sábado, ele ainda seria um dos responsáveis pelas prisões do traficante de drogas colombiano Juan Carlos Ramirez Abadia e do contrabandista Law Kim Chong. ''Em novembro do ano passado eu vim visitar a família em Curitiba. Foi o deputado estadual Ney Leprevost quem me apresentou ao prefeito. Ele disse: 'Beto, este é o delegado que prendeu o Abadia', ao que o prefeito comentou: 'Então por que você não faz um projeto para combater a violência aqui na cidade'? Ainda que não seja da competência da prefeitura, temos de ajudar.''

Esse é um dos temas caros ao secretário. Sobre a relação com o governo do Estado, é de poucas palavras. ''É difícil, é difícil.'' Por ser ano eleitoral, a dificuldade é maior ainda. ''Mas tenho esperanças. Acho que, passado esse período, podemos trabalhar juntos'', diz, um tanto resignado por não poder ir para a ação.

Diferente daquele por quem se espelha, o ex-prefeito de Nova York, Rudolph Giuliani, Francischini, como secretário municipal, não tem o poder de polícia, pois no Brasil a função cabe aos governos estaduais e Federal. ''Admiro o Giuliani. Ele limpou a polícia e fez ações sociais, coisa que o governo Federal tenta, mas não consegue.''

Como a Folha de Londrina já tratou em reportagem anterior, a galinha dos ovos de ouro do secretário é a Rede de Colaboração Curitibana, que será lançada hoje à noite na Ópera de Arame. É o que ele chama de mega-projeto. Uma rede de colaboradores, que informariam por um sistema online baseado em conceitos da PF tudo o que sabem sobre o tráfico de drogas na sua região. ''A informação vai chegar mastigada às polícias. Vamos falar quem é o cara, onde vive, seu telefone e onde atua. Ao mesmo tempo, vamos enviar uma cópia disso ao Ministério Público (MP), para que cobre essa ação.''

Segundo a assessoria do MP, houve uma conversa preliminar sobre a parceria, mas até o momento ainda não foi acertada. Quanto ao secretário de segurança pública do Estado, Luiz Fernando Delazari, a FOLHA fez um pedido de entrevista, mas ele não comentou o assunto.

O treinamento dos colaboradores de Francischini começou no dia 24 de maio, quando 2.200 deles passaram por um seminário de quatro horas sobre drogas, incluindo uma palestra com o próprio secretário. O palco para o evento foi uma igreja evangélica, na Cândido de Abreu. Dos presentes, 800 eram pastores. ''Imagine que cada uma delas repasse essa informação para outras 100. Logo, serão 220 mil.''

Questionado sobre a possibilidade real de alcançar tantas pessoas, Francischini comenta: ''Mesmo que seja multiplicado por dez, alcançaremos com essa primeira palestra 22 mil pessoas, que já é um número grande.''

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‘Enxugando gelo’

‘‘Nos últimos dois meses foi complicado. A pressão está grande. Antes era fácil achar crack em qualquer lugar. Agora está tudo espalhado’’, comenta um usuário da droga (ver texto nesta página). De acordo com o secretário Fernando Francischini, a reforma da Tiradentes foi um pedido dele e do coronel Itamar dos Santos, secretário municipal de Defesa Social. ‘‘Ali era o centro do tráfico. Melhoramos a iluminação e instalamos mais 22 câmeras no setor histórico.’’

A reforma da praça será entregue amanhã. Segundo dados da prefeitura, desde o início do monitoramento, em março, 57 pessoas foram detidas graças à implantação da tecnologia. As novas câmeras vieram a somar às outras 14 que já haviam sido instaladas.

Quando chegou, há quatro meses, Francischini tornou célebre a sua frase de que estaria cansado de enxugar gelo. ‘‘Participei de todas as grandes operações e muito cedo alcancei altos postos na PF. Me faltavam desafios.’’

Acredita que aliar prevenção e repressão pode evitar a repetição do ritual de secar gelo, que ele atribui a idéia de que uma mega-operação da PF leve a prisão de um grande traficante apenas para outro surgir no lugar. Entre os traficantes, cita uma mudança de perfil. Antes, aquele que virava usuário acabava morto pelo traficante maior. Hoje, o traficante de ponta é dependente químico. ‘‘Ele vende seis ou sete pedras e ganha duas. E vive como um usuário-zumbi.’’

Questionado se não estaria repetindo o ritual praticado por anos na PF, Francischini diz que o que lhe dá a segurança de seguir em frente é o resultado do início do trabalho com um dos projetos que trouxe na bagagem: o Bola Cheia. Ele promete que até o final do ano a proposta alcance as nove regionais da cidade. A idéia começou a entrar em prática no Colégio Expedicionário, no Novo Mundo. Às sextas-feiras e sábados, das 22 às 2 horas da manhã, horário de pico no tráfico, o colégio abre as portas e oferece uma série de atividades de lazer para jovens e adultos.

‘‘Eu fui com o motorista em um carro da prefeitura e passamos pelos seis pontos de venda de drogas da região à uma hora. Eles estavam vazios. Os vaporzinhos estavam todos no projeto.’’ A idéia não é nova. Francischini traz o modelo que Rudolph Giuliani implantou em Nova York nos anos 90. ‘‘É um projeto estudado. Dando ao jovem atividade à noite, evita que ele vá até a esquina ou para o boteco vender bebida. É dali que nasce o tráfico’’, diz. (R.U.)

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Centro é o maior ponto de venda de drogas

''O Beto (prefeito Beto Richa) me diz que Curitiba, por ser o primo rico, tem a obrigação de ajudar''. O secretário Francischini, então, tem buscado conversar com os prefeitos da Região Metropolitana de Curitiba (RMC) - afirma já ter contatado os de Colombo, Pinhais, São José dos Pinhais e Tijucas do Sul - para implantar o seu sistema em outras cidades. Sobre o centro da capital, afirma que um estudo que fez comprovou ser o ponto de maior venda do tráfico de drogas. ''Mas na periferia é muito mais forte a relação com os homicídios.''

Enquanto Sítio Cercado, Uberaba, Cajuru e CIC são os locais que ficam logo na seqüência do Centro em venda de drogas, eles são justamente os quatro primeiros em relação a homicídios. ''Na região central a venda é mais qualificada. É o ecstasy das boates, a cocaína e não só o crack.''

Francischini foi cedido pela PF e trouxe consigo uma equipe de peso. Como substituto, ele tem o delegado Ruben Fockin, há 33 anos na PF, e mais dois agentes da área de inteligência. A equipe da Secretaria Antidrogas Municipal totaliza 42 pessoas e conta com psicólogos, médicos, sociólogos e pedagogos.

Outra frase que marcou a chegada do secretário a Curitiba foi a de que acabaria com a cracolândia, o polígono do tráfico na região central da cidade. ''Funciona à luz do dia na cara da gente. Quando uma autoridade quer mostrar que está trabalhando, ela pega um ponto simbólico'', diz, pouco antes de fazer um anúncio. ''Você vai ter novidades muito em breve. Pode esperar. Estou certo que até o final do ano você vai voltar aqui para me ouvir falar do fim desta história'', afirma. ''É só esperar a minha rede de colaboradores funcionar. E não se coloca a credibilidade dessas operações todas se não se tem a certeza de que vai acontecer alguma coisa naquela região. Pode escrever'', diz, convicto.

''Acho que é possível que isso aconteça se a prefeitura fizer a parte dela. Se houver revitalização urbana e investimento. Pois se não acontecer isso, só a ação da polícia não basta. No centro há muitas áreas abandonadas que servem de moradia às pessoas de rua'', contrapõe o tenente-coronel Jorge Costa Filho, responsável pelo sistema de narcodenúncia da Polícia Militar. (R.U.)

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Cidade terá dois programas de denúncia

''Não adianta criar vários programas de colaboradores. O 181 está funcionando'', opina sobre a Rede de Colaboração Curitibana o responsável pelo sistema de narcodenúncia estadual, o Tenente-Coronel Jorge Costa Filho, que registrou 111.500 denúncias desde a criação do projeto há cinco anos. ''A primeira questão é a qualidade do sistema. E depois a sua força, o seu respeito. Quando você imprime e o juiz vê que a informação é do 181, ele sabe que foi muito bem apurado.''

Francischini concorda que o sistema funciona muito bem. Porém, entende que existe a necessidade de outro que chegue mais próximo das pessoas. ''Eu quero um passo à frente. Um contato direto com o líder comunitário: ele sabe quem é o traficante, sabe como funciona. Ele não quer se identificar e eu não quero ligação anônima, pois não sei se é falso ou se não é o próprio traficante falando'', afirma o secretário.

''Ele (o secretário Francischini) sabe como funciona o 181. Enquanto estava na Polícia Federal, usou nossas informações várias vezes'', diz o tenente-coronel Costa. ''E é importante lembrar que essa não é uma discussão política, pois toda informação que for em prol do cidadão é bem-vinda.'' (R.U.)

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O crack não distingue classe social

Mauro Frasson
Para o usuário de crack entrevistado, vivemos em um sertão: ‘‘E, tal como lá, aqui temos as regras básicas de sobrevivência’’

O texto que segue é sobre um usuário de crack que, à noite, vagueia com freqüência pelo centro da cidade. Gosta das ruas vazias e considera-se um andarilho. Às vezes, demora três ou quatro dias para voltar para casa e fica sem tomar banho no período. Sobre os que moram na rua diz que são personagens que vivem no limiar entre diferentes realidades e chegou a se apaixonar por um deles. São pessoas que compara a seres medievais.

Cita filósofos com familiaridade e debate suas teorias, usando algumas delas para explicar a noite. A Rua Cruz Machado conhece desde criança. Sobre o crack, que consome há um ano, diz que traz uma sensação passageira, de uns 15 segundos. Conta que uma bucha é vendida a preço tabelado: custa R$ 10. Para fazer um pelotaço, duas, em geral, saem por R$ 15 e três por R$ 20.

Pelotaço é a reunião das pequenas pedrinhas de crack, fumadas em conjunto na lata para potencializar o efeito. A sensação de fumar o crack na lata, que pode ser de refrigerante, ele não considera prazerosa. Entende que é exatamente na sensação efêmera, de ter de buscar a próxima, que reside a vontade para continuar consumindo.

Começou a se preocupar quando notou que estava indo encontrar uma pessoa querida por saber que se cobrasse uma dívida teria dinheiro para comprar mais. Foi aí que se deu conta que precisava voltar a ter um emprego, antes que entrasse em uma preocupação de vender as próprias coisas ou mesmo roubar para poder comprar crack.

Por se trajar com roupas limpas e bem cuidadas, acaba tendo tratamento diferenciado. Por outro lado, é visto como um de fora. Diz que é bem trajado apenas para esse mundo. O mundo do dia, porém, não o vê com bons olhos. O pré-conceito é forte. A diferença para ele, entre o crack e a cocaína, é que o primeiro é mais difícil de esconder o consumo, e entende que o pó está mais alastrado nas classes mais altas. Quando está sujo, na fossa, afirma ser difícil encarar os olhares de indiferença.

Contudo, alguns de seus amigos, que como ele são de classe média ou classe média-alta, também estão no crack. Enxerga a Cruz Machado como a região da prostituição oficializada, como símbolo do escape das coisas. E acredita que muitas pessoas poderosas estejam envolvidas no submundo da noite. Cita várias delas nominalmente.

As pessoas com mais dinheiro, em geral, passam de carro ou carrão para comprar. Com a reforma da Tiradentes, a pressão policial ficou mais intensa e até chega a dizer que está funcionando, pois as pessoas estão começando a se sentir cercadas. Ali, na Tiradentes, era ‘‘o lugar’’ e agora as pessoas ficam muito expostas.

Cansou de ver meninos-usuários com dez ou 11 anos e pensa que é fundamental evitar o contato das crianças com esse mundo. ‘‘Vivemos num sertão. E, tal como lá, aqui temos as regras básicas de sobrevivência.’’ (R.U.)


* Reportagem originalmente publicada no Caderno Curitiba do Jornal Folha de Londrina, do dia 26/06/2008.

Sobre o texto: continuação da reportagem “Aos pés da catedral”, texto do post anterior.

Ponto de partida: a editora do sucursal em Curitiba, Adriana de Cunto, a Drica, pediu que a matéria que aparece no post anterior tivesse um contraponto oficial. Surgiu daí a idéia de entrevistar o secretário Francischini. O depoimento do usuário de crack, que não tem seu nome citado pela reportagem, já fazia parte da proposta original da primeira versão da matéria. A reportagem completa ocupou duas páginas de jornal. O texto do post anterior, a página 01 do Caderno Curitiba, e o deste, a página 03 do mesmo caderno.

A reportagem: a entrevista com o secretário Francischini é base para quase todos os textos desta página, que agora, com a passagem do tempo, me parecem burocráticos. O encontro foi em seu escritório. Para desespero de qualquer jornalista, quando cheguei lá, ele pediu que aguardasse um pouco: segundos depois, entrava na sala a assessora de imprensa da secretaria, que acompanharia toda a entrevista. Assim, a entrevista se torna, necessariamente, mais travada. A presença dela, o lembra, a todo momento, que deve ter de tomar cuidado com o que dizer. Por momentos, ela completa as frases dele ou acrescenta dados que o mesmo não recorda.

O mais difícil da entrevista, porém, seria a própria rigidez do secretário. Muito inteligente, tem suas palavras absolutamente calculadas e só responde o que lhe convém. Algo como: – Qual a sua cor favorita e por quê? – ao que o vendedor de sorvete responde: – Azul. Azul é o nome do novo produto que estamos lançando. É moderno, prático e gelado. Um sorvete dos bons – ou seja, o secretário, insistentemente, exigiu da capacidade questionadora deste entrevistador, necessitando de um esforço especial para que este não apenas abrisse espaço para um discurso pronto. Para evitar conflitos, o secretário estadual, o Delazari, optou por não dar um depoimento, o que é comentado na matéria. Soube depois que eles são amigos e que evitam o conflito midiático.

Repercussão: especificamente sobre esta página, me chama à atenção que Terence Keller, personagem do texto que abre a seqüência iniciada no post anterior (e onde está relatada a repercussão dos dois como um todo), tem no depoimento do usuário-anônimo o momento que mais gostou da reportagem.

Erros, lapsos e confusões: como o secretário Francischini tinha mudado o estilo de sua barba, o departamento fotográfico do jornal optou por fazer uma nova imagem. Foto marcada e feita. Na hora da diagramação, porém, se fez confusão e a imagem que aparece no jornal (e que é reproduzida neste post) é a do estilo anterior, em que o secretário ainda tinha cavanhaque e bigode reunidos. Quanto ao meu texto, um lapso juvenil de gênero (já corrigido na versão que aparece aqui): “uma seminário”.

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