quinta-feira, 26 de junho de 2008

Aos pés da catedral

Jovem cineasta paranaense adapta para vídeo poema sobre a vida noturna na Rua Cruz Machado

Rafael Urban
Equipe da Folha*

Mauro Frasson
O cineasta Terence Keller enquadrado no plano final de seu filme: a catedral deformada pelo vidro curvo do tubo do ligeirinho


‘‘louca, brilhante, sem fôlego
rua-vício, rua-oximoro
de não ir à parte alguma
de uma miséria ancestral
a cruz machado termina
ao desenlace da esquina
nos pés de uma catedral.’’

Pouco antes dos versos de abertura de seu poema ‘‘Balada da Cruz Machado’’, reproduzidos acima, o poeta curitibano Rodrigo Madeira, 29 anos, cita o escritor francês Charles Baudelaire. ‘‘Tem piedade, satã, desta longa miséria’’. A noite, na rua-símbolo do tráfico de drogas e da prostituição no centro de Curitiba, é representada de maneira poética, mas sem concessões pelo jovem que ganhou o prêmio Helena Kolody de Poesia, em 2006.

‘‘alguém além de Deus e

da polícia e taxistas
e putas e vigaristas
cafetões e travestis
sabe que depois das 20
nas calçadas do acinte
beijam latas os guris?’’


O crack, fumado nas latas citadas pelo poeta, é um dos temas centrais na adaptação, também poética, que o cineasta Terence Keller, 30, faz do texto do amigo Madeira. O filme, também batizado de ‘‘Balada da Cruz Machado’’, foi um dos oito projetos aprovados no Edital de Vídeo Digital, do Fundo Municipal de Cultura, em 2007, recebendo R$ 10 mil para a sua execução. ‘‘Minha intenção é apresentar essa realidade e não um juízo de valores’’, explica Keller. ‘‘Gostei do poema e quero dividir isso com as pessoas. E como, infelizmente, as pessoas não lêem poesia, o audiovisual é o meio que eu acredito que possa alcançar um público maior.’’

‘‘pedra pedra pedra pedra

quem dentre vós que estiver
sem pecado
que fume a primeira pedra.’’


No início do ano passado, Keller conversou com um amigo de Castro, interior do Estado, que lhe disse que lá a situação em relação ao tráfico e consumo de crack estava feia. ‘‘Ele me alertou: ‘Aqui na cidade, as coisas estão difíceis. Especialmente na periferia’.’’ O cineasta comentou sobre essa conversa com o amigo Madeira e, no dia seguinte, recebeu o poema em seu e-mail. ‘‘O texto me impressionou. Ainda que agora com o crack a troca seja ao máximo de saliva e não haja troca de sangue, como nos picos (de cocaína) nos anos 1990, eles (os usuários) estão definhando.’’

A mesma impressão tem um dos donos do restaurante Acrótona, casa de sopas que funciona há 34 anos na Cruz Machado e um dos apoiadores do filme. Depois de trabalhar por 18 anos como barman e depois como gerente, Marco Antônio Pereira comprou o estabelecimento. ‘‘A gente vê aí. As prostitutas chegam lindas. Você dá três meses e a menina está um lixo. Isso (o crack) veio para arrebentar’’, e ele completa. ‘‘Elas vão secando. Ficam sujas, mal-cheirosas. Um descuido total, que elas não vêem, mas, para nós, que estamos observando, nós enxergamos tudo.’’

Tensão nas gravações

As filmagens do curta, que aconteceram entre os dias 10 e 13 de abril, tiveram momentos de tensão. Ao gravar o plano final do filme, uma tomada em que a Catedral da Matriz aparece deformada através do tubo do Ligeirinho na Tiradentes, às 4 horas da manhã de um sábado, a equipe foi ameaçada. ‘‘Nos sentimos seguros durante toda a filmagem e tivemos o apoio de diversos comerciantes da região, mas aquela noite foi tensa.’’

Primeiro, a disputa entre dois grupos de traficantes, que arremessavam uns nos outros as pedras do petit-pavé quebrado pela reforma da Praça Tiradentes. Depois, foram alertados por usuários de que estar com uma câmera era sinônimo de problemas.

Mas a noite ainda traria outras surpresas. Outro grupo, de cinco pessoas, passa pelo tubo do ligeirinho batendo pedaços de madeira no chão e anunciando. ‘‘Se alguém filmar a gente, vão levar ripada.’’ A equipe de filmagem insiste, e segue dentro do tubo na gravação da imagem da catedral. Dois da turma dos pedaços de pau retornam, o que faz com que o cineasta Terence Keller saia para mostrar aos que o ameaçavam o trecho do roteiro que anunciava ‘‘plano da catedral através do tubo do ligeirinho.’’ ‘‘Pô, agora você me convenceu’’, respondeu o líder do grupo.

‘‘pela praça tiradentes

desaguadouro e monturo
de homens sem futuro
traficantes e usuários
usuários traficantes
consumindo a criptonita
qual se todas suas vidas
consistissem num segundo...’’


Num dos planos do filme, um dos atores sobe a Saldanha Marinho descalço, como se tivesse trocado o calçado por droga. Na seqüência, o jovem apareceria fumando crack. ‘‘Só que, na hora em que estávamos filmando a cena, um garoto de 14 anos, descalço e de dedo queimado, veio conversar conosco. Ele me perguntou: ‘Agora ele vai fumar, né?’.’’

O encontro da ficção, da realidade poetizada com a nua e crua do usuário que viu uma cena e entendeu o filme, fez com que Keller refletisse. ‘‘Mesmo contra a vontade do editor, que diz que nem todo mundo vai compreender o que esse garoto entendeu, vou tirar o plano do menino fumando. A sugestão é muito mais forte.’’

Como conclusão da experiência do trabalho que fica pronto entre agosto e setembro, Keller, também responsável pelo Díinamo, ponto de encontro dos cineastas paranaenses às quartas-feiras, é enfático. ‘‘A única coisa que percebi é que esse universo é muito mais acessível e real do que parece. Para nós que vivemos o mundo diurno, parece distante’’, diz. ‘‘Mas essas pessoas que estão lá pensam, sentem e têm opiniões sobre as coisas. E sabem muito mais do que imaginamos sobre as drogas. Afinal, são elas que vivem o problema e que são as maiores vítimas delas.’’

Box
‘Eles lá e nós aqui’

Rafael Urban
Equipe de filmagem e ator na esquina das ruas Cruz Machado e Ermelino de Leão: encontro da realidade e ficção

''Antes, não tinha shopping e lugar para sair à noite em Curitiba. A turma vinha toda para cá. Quando abriu o (Shopping) Muller (1983), caiu o movimento. E, quando abriram os bingos, caiu de vez'', comenta Marco Antônio Pereira, proprietário da casa de sopas Acrótona desde 2004. Ele considera o seu restaurante um dos únicos estabelecimentos de ambiente familiar que funcionam à noite na Rua Cruz Machado.

Sobre o submundo da noite na rua que termina aos pés da catedral, Pereira diz que a relação é tranqüila, num estilo ''eles lá e nós aqui''. Sobre a influência do ambiente em relação ao movimento de sua casa, avalia que é de 20 a 25%, pois a população fica com receio de ir à Rua Cruz Machado à noite. ''Até o secretário de Segurança do Paraná, o (Luiz Fernando) Delazari, falou que as ruas mais perigosas de Curitiba são a Saldanha Marinho e a Cruz Machado. E isso afeta o público. Um cliente chegou a falar: 'Se o secretário falou, existe'.'' A assessoria da secretaria não soube dizer se o secretário foi o responsável por tal afirmação.

Para o comerciante, a solução é fácil: bastaria uma viatura de polícia permanente na esquina próxima ao seu restaurante, o que, em sua opinião, acabaria com o uso e tráfico de drogas. ''Quanto à segurança, nós, em 36 anos, nunca fomos assaltados. Aqui, à noite, não tem roubos. A questão para eles é a droga, então, se assaltarem, vão prejudicar eles mesmos.''

A fala é reiterada por outro comerciante, que este repórter conversou sem se identificar como jornalista e, por isso, não cita o seu nome. ''Existe um universo de regras que todos que vivem da noite respeitam. Só se dá mal aqui quem vem de fora, que desconhece as regras e acaba fazendo bobagem.''

Há 18 anos trabalhando na Cruz Machado, Pereira, o dono da Acrótona, diz que os tempos mudaram. ''Aqui, o tráfico sempre existiu. Mas hoje é mais enrustido. Antes, era em toda a esquina. Era mais livre e, hoje, mais moderado.''

Apesar das dificuldades, entende que pior que a realidade é a fama que a rua tem. ''Uns falam que é a Boca do Lixo, outros que é ponto de tráfico. E nós sobressaímos a tudo. Criada em 1974, a nossa casa ficou. Esfriou, é fila direto.''

Depois do fechamento da casa, as sobras de sopa alimentam os moradores de rua e usuários de droga da Cruz Machado. ''No final da noite, damos uma sopa para o pessoal aqui. É tarde e eles estão com fome. Dá até dó.'' A partir disso, cria-se um vínculo. ''Eles ficam na deles, mas cuidam da casa também. Não importa o que eles fazem. E eles olham a casa para a gente.'' Mas Pereira pede que esperem na esquina, distante da frente do restaurante. ''Se um cliente me vê com uma dessas pessoas, não volta aqui. Pensa que eu estou envolvido com essa turma. Tenho que manter a distância. É aquela coisa: me diga com quem andas, que direi quem és'', diz. ''É um aviso que dou aos meus funcionários, pois a polícia também não vai saber diferenciar.'' (R.U.)

Leia mais sobre esse assunto na página 3 [no próximo post].



* Reportagem originalmente publicada no Caderno Curitiba do Jornal Folha de Londrina, do dia 26/06/2008.

Sobre o texto: este é longo e tem continuação no próximo post. É o primeiro que escrevi na Folha de Londrina a ser publicado em duas páginas de jornal. Somados os textos, que foram reduzidos, a contagem de caracteres ultrapassava 22 mil.

Ponto de partida: em 2007, formei, ao lado do crítico Carlos Eduardo Lourenço Jorge e do professor e cineasta Eduardo Baggio, a comissão de seleção de projetos para realização de filme digital do Fundo Municipal de Cultura de Curitiba. De toda aquela experiência, o momento mais marcante foi quando o Carlos Eduardo leu em voz alta o poema “Balada da Cruz Machado”. O texto não era apenas brilhante, mas acompanhado de um projeto para adaptá-lo ao cinema que é o melhor que já tive a oportunidade de ler e que recebeu, por unanimidade, a nota máxima.

Mais tarde, conheci e me tornei amigo de Terence. Ele ao lado de Josiane Orvatich são os responsáveis pelo Díinamo, um espaço muito importante que materializou uma possibilidade de encontro entre os realizadores curitibanos. Na noite de dezembro em que conheci o poeta Rodrigo Madeira no cineclube, ele topou e participou de um projeto fotográfico que realizei no últimos dias de 2007.

A reportagem: No texto, reproduzo, entre as várias versões existentes do poema, trechos da que o cineasta optou por usar em seu filme – Madeira publicou uma delas em versão integral no blog Pó&Teias.

Iniciei a reportagem com uma entrevista com Terence, que me contou da produção de seu filme. Semanas antes, acompanhei um dia de gravações e uma das fotos que fiz aparece na matéria. Da conversa surgiu a idéia de irmos à Cruz Machado naquele mesmo dia. Pelas 23h, fui, acompanhado de Terence, à rua. Ainda que o ponto de partida seja o poema e o filme, a discussão chega, evidentemente, ao consumo de crack na região central da cidade.

Lá jantamos na casa de sopas Acrótona e, me identificando como jornalista da Folha de Londrina, conversamos com Marco Antônio Pereira, um dos proprietários do restaurante. Ele sugeriu que retornasse no dia seguinte para falar com seu sócio e com outros comerciantes da região, o que acabei não fazendo, uma vez que a matéria não era investigativa e que, se eu voltasse a dar as caras por ali, minha presença seria logo notada, o que talvez não fosse interessante para a minha integridade física. Na seqüência, andamos pela região e conversamos com outros comerciantes. Falamos com o dono de um boteco – sem me identificar como jornalista –, mas ele logo deu sinais de ficar desconfiado com tamanha curiosidade. Utilizo um trecho da fala dele sem identifica-lo: “A fala é reiterada por outro comerciante, que este repórter conversou sem se identificar como jornalista e, por isso, não cita o seu nome”. O pedido foi do próprio Terence, que sugeriu, com razão, que não seria uma boa contar ao sujeito que eu era jornalista.

Depois, fomos a um dos bordéis da região. Conversamos com algumas das prostitutas que, logo de cara, nos contaram que uma delas era menor de idade. A jovem me contou sua história: a mãe aliciara ela e sua irmã. Via sua terra natal, Antonina, como uma cidade tomada pelo crack, mesmo caso de muitas de suas colegas da noite. Contava que optou pela prostituição aos 16, para poder sair de casa e deixar de ser espancada pelos irmãos, cujas pancadas ainda lhe deixavam marcas. A jovem sugeriu que conseguiu trabalho no local por apresentar uma identidade falsa, em que aparecia como de maior de idade, mas não consegui apurar a veracidade da fala. Tampouco ela me confirmou que, realmente, tinha menos de 18 anos.

Ainda que os depoimentos das mulheres que trabalhavam no bordel tivessem sido interessantes, optei por não utiliza-los na matéria. Por não poder confirmar se a casa realmente estava empregando uma menor de idade, e por não ser investigativo o intuito da matéria, eu e a editora da sucursal curitibana do jornal, Adriana de Cunto, a Drica, optamos por não utilizar a informação. No bordel, mais uma vez, não me identifiquei como jornalista.

Repercussão: o jornalista Luiz Geraldo Mazza elogiou a matéria em seu programa matinal apresentado na Rádio CBN ao lado de José Wille. Drica, a editora da sucursal, me motivou a inscrever a reportagem em prêmios de jornalismo. Paulo Urban, meu irmão, achou que o texto tinha algumas barrigas – momentos truncados – e sugeriu que talvez fosse pelo uso de intercalações com trechos do poema. O cineasta e amigo Terence Keller, personagem da matéria, gostou do texto com ressalvas. Sua parte favorita é o depoimento de um usuário (que aparece no próximo post). Ele criticou algumas imprecisões deste repórter, que serão tratadas no próximo item.

Erros, lapsos e confusões: Terence lembrou este pobre repórter que a heroína nunca veio com força para a cidade, e que os picos dos anos 1990 de que falava eram os de cocaína. Na versão original do texto (que neste blog aparece corrigida) eu completo a fala de Terence erroneamente: “como nos picos (de heroína)...”. Outra é de quando descrevo a ação do momento em que a turma dos pedaços de pau retorna para tirar satisfações. A versão original do meu texto (“A turma dos pedaços de pau retorna”) dá a entender que os cinco retornaram. Porém, Terence me disse que só dois deles voltaram. Na versão que aparece neste blog, corrijo a imprecisão. Além disso, coloquei uma trema que não existe em “Shopping Mueller”.

Nenhum comentário: