quarta-feira, 11 de junho de 2008

Cinema na boléia

De posto em posto, o caminhão de placas AOS 6547, de Curitiba, está virando cinema em 30 cidades do Sul e de São Paulo. Na semana passada, foi a vez de Curitiba

Rafael Urban
Equipe da Folha*

Fotos: Mauro Frasson

A estrutura que já passou por dez cidades do Sul teve um custo de R$ 120 mil



Ao ver "Tropa de Elite", também um grande sucesso entre os caminhoneiros, a platéia em Curitiba, concentrada, riu e interagiu com os comentários de Capitão Nascimento

Depois de dois dias e meio de viagem desde Vitória da Conquista, interior da Bahia, trazendo mamão na carroceria para o Ceasa de Curitiba, e sem sonecas no caminho superiores a duas horas, o caminhoneiro Juliano Fagundes estava cansado. ''Mas, antes de dormir, vou assistir à Tropa de Elite''. No Posto 100, em frente ao Ceasa de Curitiba, às 19 horas da última quarta-feira, uma noite fria e chuvosa, havia uma sessão marcada do filme brasileiro que teve mais de dois milhões de expectadores nos cinemas.

A curiosa estrutura montada para a sessão de cinema é de box-trans, um tipo de coluna de alumínio normalmente utilizada para estandes de feiras e leva seis horas para ficar de pé. ''Para desmontar leva uma hora a menos. É mais fácil'', conta Renato Jockheck, o motorista do caminhão que há 49 dias leva o cinema e a sala portátil com uma tela de 150 polegadas na carroceria.

O espaço, com cem cadeiras, é coberto, o que espanta um pouco do frio da noite. Do lado de fora, uma lona, enorme e que ajuda a tornar o espaço fechado, anuncia: ''Não é história de boléia. A entrada é grátis''. ''De graça, topo até injeção na testa'', brinca um caminhoneiro presente.

Mas, se é gratuito, tem alguém por trás. ''É uma idéia que alia divulgar a marca e promover o cinema nacional'', explica Luciano França, o coordenador de marketing da Tortuga, empresa de câmaras de ar que está bancando o projeto chamado de Estrada de Cinema. A idéia foi a forma encontrada para chegar mais próximo de seu público, difícil de alcançar por outras mídias.

Além de promoção, a empresa ganha ao recolher um questionário após a exibição dos filmes. ''É uma pesquisa que pretende mapear esse universo. Quem é e o que pensa o caminhoneiro brasileiro?'', diz mais uma vez o coordenador de marketing da empresa. Ao final das sessões, que já passaram por dez cidades dos três estados do Sul, 3,5 mil caminhoneiros preencheram o questionário, motivados pela entrega de brindes.

O caminhão-cinema esteve em Curitiba desde segunda-feira e ficou por quatro dias, apresentado filmes diferentes a cada noite. Segundo Jockheck, que dirige o caminhão do projeto, na lista de favoritos nas sessões, estão as comédias ''Os Normais'' e ''Muito gelo e dois dedos d'água''. Mas a noite de quarta foi do sucesso maior, ''Tropa de Elite''.

A platéia veio chegando aos poucos, desconfiada. O frio da noite e da situação inusitada é lentamente substituído por risadas com os comentários de Capitão Nascimento. Quando o projetor falha, a reação é imediata. ''Cadê o Baiano?'', brinca com um dos personagens do filme uma voz da platéia, repleta de olhares atentos.

Ao final, 31 pessoas estavam na sala, pouco mais do que no início da sessão. Juliano Fagundes, cansado, refletiu sobre o filme. ''O interessante foi ver que tem tudo a ver com o nosso dia-a-dia''. Ele comparou a corrupção dos policiais do filme com a realidade enfrentada nas estradas brasileiras. Depois de dormir pela primeira vez em três dias, Fagundes vai para Contenda para carregar o caminhão de batatas e seguir viagem. Desta vez, o destino é Feira de Santana, também na Bahia.

Para a sessão seguinte, da comédia ''Sexo, amor e traição'', das 20h30, os primeiros a chegar foram Everton Gervazoni, 22, e Willian Binotti, 23. Na carroceria, trouxeram alimentos industrializados de Presidente Prudente, interior paulista. ''Nós vamos bastante ao cinema, pois somos jovens. Mas, para os caminhoneiros mais velhos a idéia é melhor ainda. Quando chegam em casa, têm que atender à família e não têm esse tempo'', comenta o mais novo da dupla.

O caminhão-cinema segue para Registro e para outras cidades do interior de São Paulo. Ao final de 90 dias na estrada, termina o seu percurso, retornando para Curitiba.


BOX

Música sertaneja abre a sessão


Juliano Fagundes trouxe mamão da Bahia para o Ceasa da Capital: mesmo sem uma noite de sono em três dias de viagem, optou por ficar acordado para ver "Tropa de Elite"


Com certa alegria, o carioca Batista admite que gosta mesmo é de filmes de ação


Valentin Barzan nunca gostou de filmes: quando jovem, às vezes, ia para os bailões




''Não dá tempo para isso não'', diz Valentin Barzan, 67 anos, na estrada desde 1962, poucos minutos antes da sessão. ''E, para falar a verdade, não gosto de filmes''. Barzan conta que quando era moço os outros caminhoneiros iam até às cidades em grupos para ir aos cinemas, mas ele não. ''Nunca fui disso. Quando eu era jovem, de vez em quando eu ia para o bailão. Este eu gostava''. Poucos minutos depois, levado pelos colegas, lá estava Barzan acompanhando a exibição de ''Tropa de Elite'' no Posto 100.

Guaraci da Silva, ou Batista, como é mais conhecido, é de Resende, estado do Rio. Dos filmes brasileiros, o último que assistiu foi ''Central do Brasil''. Mas admite com certa alegria que seu gosto é outro. ''É filme de ação mesmo''. Agradeço por ele conversar com a equipe da FOLHA e o deixamos descansar na cabine de seu caminhão. ''Ei!'', chama Batista vindo atrás de nós. ''Também vi o 'Auto da Compadecida''', lembra. Batista, tal como o senhor Barzan, seria um dos caminhoneiros presentes na sessão de Tropa.

Por trás de toda a estrutura, além de Jockheck, responsável por dirigir o caminhão-cinema, a equipe fixa ainda conta com dois promotores. Álvaro Fisten é um deles. ''Para chamar à atenção e convidar os caminhoneiros, mostramos um clipe sertanejo na abertura.''

De toda a experiência, Fisten vai guardar uma lembrança especial na memória. ''De todo esse tempo viajando, é a imagem de um caminhoneiro que mais me chama atenção pois, depois de um bate-papo, ele me disse 'Poxa, obrigado por conversar comigo'. Foi emocionante.'' Das dez cidades que passou, foi em Itajaí, no Posto Santa Rosa, que o promotor destaca a relação do público com o projeto. Nas sessões na cidade catarinense, as cadeiras foram todas ocupadas e a platéia ainda sentou-se nos corredores. (R.U.)



* Reportagem originalmente publicada no Caderno Curitiba do Jornal Folha de Londrina, do dia 11/06/2008.

Sobre o texto: reportagem de uma noite fria e chuvosa. Quando eu, o motorista (seu Zé) e o fotógrafo (Mauro Frasson) chegamos ao Posto 100, a estrutura para o cinema estava no chão: com a chuva, parte dela tinha caído.

Ponto de Partida: sugestão da assessoria de imprensa, que chegou até mim pela pauteira do jornal (Maigue Guets). Ela sugeriu que fizéssemos uma matéria rápida.

A reportagem: foi muito bacana ter contado com a companhia do fotógrafo Mauro Frasson. Experiente e de longa data no jornalismo, a presença dele acalmava os caminhoneiros, um tanto receosos em dar depoimentos. Demos uma volta no posto e fomos conversar com alguns deles em suas próprias cabines. Mauro fotografa sem pedir um consentimento formal, verbalizado. Mas o faz com tamanha naturalidade que não constrange o fotografado. Fiz questão de aguardar o final da sessão do filme para tomar alguns depoimentos.

Repercussão: o Guto Pasko, presidente da AVEC (Associação de Vídeo e Cinema do Paraná), curtiu a matéria e repassou para os associados. Algumas das pessoas com quem eu comentei sobre o tema do texto diziam: “Ah, esse é aquele projeto que passou na TV, né?”. No mesmo dia em que eu fiz a reportagem, havia uma equipe da RPC no local. É impressionante a força da TV. Quem retornou, também, foi o assessor de imprensa, agradecendo pela matéria. “Ah, só depois entendi porque você anotou o número da placa do caminhão”, disse. O assessor pediu que eu contasse como descobri o valor da estrutura, que não é divulgado pela empresa, mas não insistiu ao ponto de ficar chato.

Erros, lapsos e confusões: sobrou um “de” na frase “na estrada desde de 1962”. Na diagramação, Batista virou o Fagundes: fotos trocadas. Aqui, a confusão foi desfeita.

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