terça-feira, 24 de junho de 2008

É dia de baile

Seja segunda, terça, quarta, quinta, sexta, sábado ou domingo é dia de baile para a terceira idade em Curitiba

Rafael Urban
Equipe da Folha*


Fotos: Diego Singh
‘‘Tem muito idoso que se comporta como criança’’, comenta Luisita Hostins, também responsável pelo controle moral do baile


O baile nem tinha chegado à sua metade, mas a rainha Maria da Conceição Domingues já havia trocado de parceiro de dança mais de dez vezes


O olhar da experiência: Luisa Rubineq, 88 anos de idade e 18 de baile na Comunidade Santo Inácio de Loyola


Enquanto a turma descansa e espera o convite para dançar, a banda exclusiva de bailes da terceira idade segue tocando

Faz 18 anos que Luisa Rubineq freqüenta o baile da terceira idade da Comunidade Santo Inácio de Loyola, ligado à Paróquia Nossa Senhora da Paz no Boqueirão, em Curitiba. Quando Luisa começou a dançar lá todas as sextas-feiras, tinha 70 anos. Do começo da história do baile não se tem a mesma certeza. Alguns dizem que teve seu início há oito, outros que foi há 25 anos. O que se sabe é que eram as freiras que agitavam os primeiros encontros, em uma sala de 60 metros quadrados. Espaço que nem de longe seria capaz de receber as 400 pessoas que se preparam para ir ao salão principal todas às sextas-feiras. ‘‘Acho que veio menos gente hoje por causa do frio’’, comenta Luisita Hostins enquanto conta as fichas de controle no caixa. ‘‘É, hoje foram umas 330.’’

Como outros tantos na cidade, o baile do Santo Inácio é à tarde. Começa às 13h30 e tem horário para terminar: 17h30. Do caixa, Luisita só sai para fazer a reza, às 16 horas. Ela não é apenas o controle financeiro. ‘‘Olha a Luisita aí’’, brinca um senhor ao passar por um casal que trocava carícias no meio do salão. ‘‘Quando o pessoal apronta, eu cobro mesmo: ‘Que coisa! Já cansei de falar. Vamos se vestir com roupa de senhora da terceira idade. Pensa que é menina?’, subo ao palco e falo assim mesmo no microfone’’, explica Luisita. ‘‘Tenho que manter o ambiente familiar, sabe?’’

A reclamação mais freqüente que tem recebido nas últimas duas semanas é a do aumento no preço da entrada, que de R$ 4 foi para R$ 5. Para o cachê da banda Musical JB, exclusiva de bailes da terceira idade, a organização gasta R$ 300 a cada sexta-feira. ‘‘Aqui é o melhor baile que a gente toca. As músicas são de vários estilos, mas é mais gauchesca mesmo. É o que a turma mais gosta.’’

Apesar do comentário do vocalista João Batista Barros, que começou o grupo com os dois irmãos há cinco anos para fugir dos shows noturnos, o repertório é eclético e chega até a Jovem Guarda de ‘‘Era um garoto...’’, na versão de Os Incríveis.

Erotides de Oliveira Correia, 74, e João Pedro Schreiber, 82, são dos mais animados e dos poucos que não dançam apenas de corpo coladinho. Ele, por vezes, se equilibra em um pé só. Também dançam juntos, fazem pose e dramatizam. O casal se conheceu há oito anos, em um baile de uma igreja em Araucária. ‘‘Minha esposa faleceu há dez anos. E foi logo depois que conheci a Nena.’’ Erotides tem o mesmo apelido da ex-mulher, o que facilita a vida de Schreiber. ‘‘Chamo ela de Nena 2. É o meu anjo.’’ Ela ri do comentário.

Ele foi soldador. Ela tinha o pai que tocava gaita e desde pequena, quando vivia na roça, teve contato com a música. Trabalha até hoje de benzedeira, tradição que sua mãe lhe deixou pouco antes de morrer e que está na família desde a sua avó. ‘‘Canta, canta Carolina, quando tem vontade de chorar’’, exclama Erotides ao confundir a primeira estrofe de sua música favorita, e uma das mais repetidas no baile. A preferida de seu marido é ‘‘Olhos Verdes’’, de Amado Batista, que Schreiber lembra em homenagem à cor dos olhos de sua amada. ‘‘Mas esses olhos verdes que tanto me atraem, me sinto contigo criança de novo, menino de mais.’’ Mal param de falar com este repórter e lá estão eles, saracoteando de novo.

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Idosos adolescentes

''Aqui no baile só entram maiores de 50'', comenta Luisita Hostins, que além de controle moral é a coordenadora do Grupo da Terceira Idade da comunidade. ''Se for homem mais novo, eu pergunto se ele vai dançar com todas ou uma só, pois elas gostam se eles vêm. Agora, se é menina mais nova, só entra se tiver acompanhada, pois as senhoras morrem de ciúmes'', diz. ''Se eu deixar entrar, só dão bola para elas.''

Por razão parecida, Luisita evita deixar entrar com roupas ousadas, que acabam chamando à atenção e ganhando muitos parceiros no baile. ''Tem muitos idosos que se comportam como criança, sabe?'' Os casais dançam e trocam de parceiros com freqüência, mas é difícil ver um beijo no salão.

''E, quando o pessoal começa a forçar a barra, eu digo: dá uma segurada nos beijinhos'', explica seus métodos Vicente Nunes dos Santos, segurança do baile há seis meses. Avalia o trabalho como tranqüilo, mas no mês passado quase teve bronca quando uma senhora chegou e viu o esposo dançando com outra. ''Aqui vem bastante gente que é casado e conta para o companheiro que vai ao médico ou ao hospital visitar um amigo. Tudo para dar uma escapada.''

Ainda não são quatro da tarde e a rainha do baile, que recebeu a faixa em eleição popular em setembro, está um pouco cansada. ''Agora já não me lembro mais, mas já dancei com mais de dez'', conta a requisitada Maria da Conceição Domingues, 81 anos de fôlego. Ela dança na segunda, terça, quinta e sexta-feiras. Na quarta, tem encontro com o grupo de artesanato e, a cada quinze dias, também vai ao Santo Inácio aos domingos, no baile aberto para todas as idades. ''Eu danço a semana inteira'', diz a octogenária sem usar figura de linguagem.

Foi um incidente com a rainha que levou Luisita ao microfone desta vez. ''Pessoal, quando estiverem dançando, cuidado para não machucar ninguém. Cuidado ao dar um passo para trás'', suspira. ''Hoje aconteceu com a nossa velha Conceição. E saiu sangue'', suspira. ''Foi o salto de alguém que pegou na perna dela. Cuidado, somos todas da terceira idade. Vamos dançar com calma.'' Luisita, 56, veste roupa preta discreta e um cachecol cor-de-rosa. Parou de dançar há dois anos, quando faleceu Abelardo, seu marido.

Dança e oração

''Se não vierem rezar, não tem lanche hoje'', exclama a organizadora do salão. São poucos aqueles que permanecem. A maioria já está do lado de fora e nos fundos, fazendo fila para o lanche, que é servido depois da reza. ''Tem algum Antônio? Hoje é dia de Santo Antônio.'' Ela conta os Antônios presentes: um, dois, três, quatro. Com a insistência, a turma vem para a frente do salão. Juntos, todos cantam parabéns aos homônimos do santo e aos aniversariantes. Em semicírculos, os presentes ficam lado a lado e começam com um Pai Nosso. Depois, de mãos dadas, rezam três Aves Maria em conjunto. Um Santo Anjo é o zeloso guardador do lanche, que vem na seqüência.

''Levamos cinco horas para fazer e, em dez minutos, não tem mais nada'', comenta a cozinheira Marina Santa Fermin, que chega às 5 horas da manhã para preparar o lanche. São 35 quilos de farinha e um total de R$ 150 em ingredientes. Em pouquíssimo tempo, as bandejas realmente ficam absolutamente vazias.

A reza que acontece antes é uma relação direta com a igreja. Luisita explica que o baile está tendo dificuldades com a paróquia. ''Falo para o padre que sempre peço para o pessoal se comportar ao sair do baile. Ao menos até chegar ao ponto de ônibus. Para muita gente, tem sem-vergonhice aqui. Mas, como você pôde ver, é um ambiente familiar.'' O Padre Erno, responsável pela paróquia Nossa Senhora da Paz, foi contatado pela FOLHA, mas preferiu não comentar o caso.

Às 17h27, a banda encerra a última música. Antes das 17h30, já não há pessoas no salão. Luisa Rubineq, a senhora de 88 anos que aparece no começo desta história, é a mais idosa do baile. Ao final, ela conclui. ''Até cansei. Foi muito bom.'' Pergunto se teve parceiro para dançar. ''Parceiro? Ah, para mim sempre tem.'' (R.U.)


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Alguns bailes da terceira idade em Curitiba:

- Clube Recreativo Dom Pedro II
Às terças, das 16h30 às 21h30
Rua Brigadeiro Franco, 3.662, Rebouças
3332-8865
Entrada a R$ 7 (inclui buffet de sopa)

- Comunidade Santo Inácio de Loyola
Às sextas, das 13h30 às 17h30
Rua Joaquim de Freitas, 341, Boqueirão
3286-8228
Entrada a R$ 5 (inclui lanche)

- Fascinação Festa & Dança
Aos domingos, das 17 às 22h30
Rua Monteiro Tourinho, 428, Bacacheri
3256-6591
Entrada a R$ 12 (inclui lanche)

- Sesc Centro
Às quintas, das 15 às 19 horas
Rua José Loureiro, 578, Centro
3233-7422
Entrada a R$ 3,50 (comerciários) e R$ 4,50 (não-comerciários)

- Sesc Água Verde
Às quartas, das 13h30 às 17h30
Av. República Argentina, 944, Água Verde
3342-7577
Entrada a R$ 4 (comerciários) e R$ 5 (não-comerciários)

- Sociedade Beneficente Recreativa
Às segundas e quintas, das 13 às 18 horas
Rua Anne Frank, 4.211, Boqueirão
3286-1477
Entrada a R$ 4

- Tradição Show
Às quartas, das 14 às 18 horas
Aos sábados, das 14 às 17h30
Rua Zonardy Ribas, 686, Boqueirão
3286-6389
Entrada a R$ 3


* Reportagem originalmente publicada no Caderno Curitiba do Jornal Folha de Londrina, do dia 24/06/2008.

Sobre o texto: esta é paixão antiga.

Ponto de Partida: foi em uma oficina de Jornalismo Cultural com Nilson Monteiro, em 2006, que nasceu a idéia desta matéria. Lá estavam os amigos jornalistas Estelita Carazzai, Danilo Amoroso e Karla Gohr. Juntos, pensamos em uma pauta sobre um baile da terceira idade, que sonhávamos em fazer um dia. Como exercício, desenvolvemos individualmente um texto de como, supostamente, seria a reportagem. A minha terminava assim, em uma quase homenagem ao Tchekhov de “Estória Alegre”: “Há sete anos comemoram o encontro. Entram, dançam com outras pessoas e, em determinado momento não estipulado pela lógica tradicional do tempo e espaço, trocam um olhar e revivem o grande momento de suas vidas. Ele diz a frase como se fosse pela primeira vez e ela não titubeia: ‘Aceito’.”

Mais recentemente, conversei com Anita, que cuida da casa de meu pai. Ela me contou do baile da Comunidade Santo Inácio e de como a Luisita dava os limites à festa. O que reviveu a idéia e a vontade de fazer uma matéria sobre aquele universo.

A reportagem: Anita, o meu contato com o baile, não sabia nem o telefone tampouco o endereço do baile. “Mas sei chegar lá. Você me encontra no Terminal do Boqueirão e vamos juntos.” Anita não tinha celular, mas combinamos a data: uma sexta-feira. Marquei no jornal com o fotógrafo e motorista, mas eu estava morrendo de medo de não a encontrarmos no terminal e ficarmos a ver navios. Chegamos no terminal de ônibus e lá estava ela, toda enfeitada para ir à festa.

Enfim, chegamos ao baile. O carro do jornal gerou, de cara, um bafafá. Mas a turma veio logo falar conosco com uma baita disposição. O Diego Singh fotografou numa boa, mas volta e meia vinha um marido ou esposa que estava ali escondido do seu par para pedir que não o fotografasse. Uma senhora, inclusive, pediu que eu parasse com a reportagem. “Pô, se meu marido descobre, fico sem ele e sem o meu carro. Você filmou o meu carro?”. Foi divertido e o pessoal foi muito solícito e disposto a conversar. O casal Erotides e João Pedro é divertidíssimo e contou muitas histórias. O João Pedro foi dado como morto e parou de receber o INSS: foi confundido com um homônimo que tem o pai com mesmo nome e sobrenome e mãe de mesmo nome, mas sobrenome diferente. Algumas senhoras reclamaram que eu só ficava de papo e não estava tirando nenhuma delas para dançar.

Repercussão: as amigas de minha mãe, freqüentadoras assíduas de bailes, aprovaram a matéria, mas não gostaram do comportamento de Luisita. A Vera, que mora aqui no meu prédio, disse: “Como assim? Que controle todo é esse?” Disseram, também, que nos bailes da terceira idade rola pegação e que não tem essa história de não poder dar beijos no salão.

Erros, lapsos e confusões: segundo o dicionário, “octagenária” não existe. O correto é “octogenária”.

Um comentário:

Anônimo disse...

Poderiam por favor atualizar a página de bailes da terceira idade